João Cardoso Rosas
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O ecologismo como ética e como
ideologia política O
recente protagonismo político de um pequeno partido em Portugal, o PAN
(Pessoas- Animais-Natureza), colocou no centro do debate público a adesão do
eleitorado, sobretudo do mais jovem, às causas ecologistas. Logo se veio dizer
que as gerações mais jovens, quase sempre arredadas dos partidos tradicionais,
são politicamente mobilizáveis através de novas causas, que os politólogos
chamariam “pós-materialistas”. Seria o caso da defesa do meio-ambiente, do
bem-estar animal, da luta contra o aquecimento global, etc. Tal afirmação é
genericamente verdadeira e está em linha com os dados empíricos de que dispomos
sobre escolhas eleitorais. No entanto, urge estabelecer distinções para que
possamos compreender o que está verdadeiramente em causa quando falamos de
causas ecologistas e de partidos ecologistas.
O
ecologismo, como procuraremos aqui mostrar, é antes de mais uma ética aplicada
filosoficamente fundamentada, mas é também uma ideologia política e esses dois
registos não são exatamente iguais nem obedecem, por assim dizer, às mesmas
dinâmicas. Se, em termos éticos, o ecologismo tem de ser decomposto pelo menos
nas famílias do ambientalismo antropocêntrico, do animalismo e do ecocentrismo
(outras poderiam ser também consideradas), em termos ideológicos estas famílias
diferenciadas - e mesmo incompatíveis entre si - tendem muitas vezes a
juntar-se de forma sincrética. Mas comecemos pelas distinções, para depois
podermos compreender a simbiose ideológica.
1.
O ambientalismo
antropocêntrico
Aquilo
a que se pode chamar “ambientalismo antropocêntrico” corresponde à preocupação
com os efeitos da industrialização, da sociedade de consumo e da urbanização na
degradação dos recursos e dos espaços naturais. Esta é uma preocupação que data
já do final do século XIX e correspondeu, em termos práticos, à criação do Sierra Club, na Califórnia, e ao
surgimento dos primeiros parques naturais nos Estados Unidos, garantindo assim
uma proteção especial a vastas áreas do território. Esta primeira versão do
ambientalismo é aquilo que podemos designar como “conservacionismo”.
Porém,
o conservacionismo inicial evoluiu para uma visão mais abarcante e sistemática,
já que não basta conservar o aspeto natural de alguns espaços e é necessário
rever toda a relação entre a civilização humana e o mundo natural. Isso mesmo é
veiculado no pensamento dos grandes inspiradores do ecologismo no século XX,
como é o caso de Aldo Leopold nos Estados Unidos e da sua “ética da terra” ou,
num registo muito diferente, o de Hans Jonas na Alemanha e do “princípio da
responsabilidade” que deu nome a uma das suas obras mais conhecidas. No
entanto, alguns considerariam mais adequado associar estes autores, sobretudo o
primeiro, à perspetiva ecocêntrica de que falaremos mais abaixo.
A
versão mais recente do ambientalismo antropocêntrico, correspondente à própria
evolução do pensamento e das políticas ambientais assumidas pelos países mais
desenvolvidos, traduz-se na expressão “desenvolvimento sustentável”, consagrada
na Cimeira da Terra de 1992, ou seja, na
possibilidade de conciliar o desenvolvimento económico e social não apenas com
a conservação de alguns espaços naturais esparsos, ou com o cuidado ambiental
em geral, mas com todo um modelo de civilização que garanta a qualidade do
ambiente no presente e para as gerações futuras.
Em
termos éticos, o ambientalismo antropocêntrico é uma abordagem aos temas
ambientais que mantém os seres humanos no centro e olha para o contexto natural
do ponto de vista dos seres humanos. A conservação, a preservação, a
responsabilidade, a sustentabilidade, e por aí adiante, são formas de repensar
a importância do ambiente para os seres humanos, mas não colocam em causa a
ideia que são estes que têm valor intrínseco, enquanto o ambiente tem um valor
instrumental. Nesta perspetiva ambientalista não se considera a possibilidade
de que os ecossistemas, ou a manutenção da biodiversidade, tenham prevalência
em relação à garantia da qualidade de vida dos seres humanos, presentes e
futuros. Estes continuam a ser, de forma mais ou menos assumida, a razão para
pensar e agir ambientalmente.
Em
termos políticos, como acima se referiu, este ambientalismo levou ao surgimento
de movimentos sociais e ao desenvolvimento de “políticas ambientais” desde
muito cedo, antes mesmo das questões em apreço terem sido devidamente
teorizadas. Mas como ideologia política, formulando visões de conjunto que
mobilizavam grupos para a ação no âmbito do sistema político, o ambientalismo
afirma-se no início dos anos 70 do século XX, muito impulsionado pela
visibilidade de catástrofes ambientais e do seu impacto para as populações. Dos
vários movimentos e partidos políticos que então surgiram o mais relevante e
influente foi o alemão, que foi também o primeiro a adotar a terminologia de
Partido “Verde” (Grünen), assim como todo um discurso e simbologia que tiveram
um forte impacto.
No
Partido Verde alemão, assim como nos seus congéneres, convivam diferentes
correntes dentro do ecologismo, não apenas o tipo de correntes ambientalistas
até aqui referidas. Voltarei a essas outras correntes adiante. Mas este partido
correspondia em geral a um ecologismo “de esquerda”, uma vez que juntava
preocupações ambientais e civilizacionais com a defesa de outras causas da
esquerda europeia e mesmo mundial, como os direitos dos trabalhadores, o
pacifismo ainda no contexto da Guerra Fria, etc.
No
entanto, a ideologia ambientalista e ecologista em geral tinha e tem também
correspondência no lado direito do espectro político. Não é de todo difícil
conciliar conservadorismo político com conservacionismo ambiental. Na verdade,
o ambientalismo, em particular na versão mais conservacionista, pode ser visto
como uma espécie de tradicionalismo. Tal como se procura manter as tradições e
instituições sociais historicamente afirmadas, procura-se também manter o
ambiente face aos efeitos nefastos da vida moderna. Por isso surgiram partidos
políticos à direita que trouxeram a problemática ambiental para o centro do
debate, embora de forma eventualmente menos visível do que na esquerda.
Em
Portugal isso aconteceu também. Assim, um dos partidos ecologistas mais bem
sucedidos no nosso caso foi o Partido Popular Monárquico, na fase em que era
dirigido pelo Arq.º Gonçalo Ribeiro Teles, nos anos setenta e oitenta. Era um
bom exemplo de um partido tradicionalista, monárquico, que colocava os temas e
preocupações ambientais no centro do seu discurso ideológico e da mobilização
política. Tratou-se também de um partido com algum sucesso, já que conseguiu
eleger deputados à Assembleia da República e chegar ao Governo, no quadro da
Aliança Democrática partilhada com os restantes partidos de direita no espectro
político português, o Partido Social Democrata e o Centro Democrático e Social.
Mais tarde, Gonçalo Ribeiro Teles fundou um outro partido ecologista, o
Movimento Partido da Terra, mas sem o mesmo sucesso político.
À
esquerda, logo no início dos anos oitenta, foi criado um partido ecologista que
toma a designação Partido Ecologista “os Verdes”. Também centrado nas questões
ambientais mas sem colocar em causa o antropocentrismo, este partido chegou ao
Parlamento sempre em coligação e unidade de ação com o Partido Comunista
Português, primeiro no quadro da Aliança Povo Unido, depois no da Coligação
Democrática Unitária. Embora o partido seja muitas vezes visto como um
instrumento da estratégia do PCP para impedir que as causas ecológicas lhe
retirem base eleitoral, não deixou de trazer para o Parlamento um discurso
ambientalista ao qual o PCP, devido à sua ideologia marxista-leninista, não é à
partida sensível (pelo contrário, o marxismo-leninismo é uma ideologia
desenvolvimentista e, estando no poder, foi responsável por algumas das maiores
catástrofes ambientais conhecidas). Foi também o Partido Ecologista “os Verdes”
que integrou o movimento ecologista português nas correntes europeias,
associando-se ao Partido Verde Europeu.
2.
O animalismo
Embora
no discurso comum e mesmo no comentário político seja comum a confusão entre
ambientalismo e animalismo, eles constituem perspetivas éticas à partida
completamente distintas e mesmo antagónicas.
O
animalismo fez também o seu percurso social e político, tal como o
ambientalismo. A preocupação com a crueldade e os maus tratos aos animais é
antiga e as primeiras associações datam do século XIX, em Inglaterra e nos
Estados Unidos, primeiro centradas na proteção dos animais de companhia, depois
alargando as suas preocupações aos animais domésticos em geral e aos animais
selvagens. Ainda no século XIX e depois especialmente ao logo do século XX cresceram
as preocupações com a experimentação animal por razões científicas, mas também
e especialmente para teste de produtos de consumo (e.g., cosméticos).
Em
termos éticos, é inegável a influência da escola utilitarista, desde Jeremy
Bentham a Peter Singer, na valorização do problema do bem-estar animal, ou
seja, no alargamento da preocupação ética dos seres humanos aos outros animais
sencientes. Mas esta visão de integração dos animais não humanos na ética
existe também do ponto de vista kantiano, por exemplo em Christine Korsgaard.
Se a visão de Kant se mantinha ainda antropocêntrica, ainda que severa face aos
maus-tratos aos animais, a de Korsgaard e outros pensadores atribui aos animais
sencientes o estatuto de “bem em si mesmo” e, portanto, um valor intrínseco e
não apenas o valor instrumental que a visão antropocêntrica continua a atribuir-lhes.
Em termos estritamente teóricos, estas diferentes visões poderão levar uns a
enfatizar a defesa do bem-estar animal, outros a defesa dos direitos dos animais.
Mas, para a prática social, esta diferença teórica pouco importa.
O
animalismo tem tido alguma influência nas políticas públicas, especialmente a
partir da segunda metade do século XX, por exemplo na legislação contrária às
práticas de crueldade animal, desde logo na indústria pecuária, mas também nas
indústrias do espetáculo (circo, etc.) e nos protocolos de experimentação com
animais em instituições científicas, ou ainda na proibição de tais experiências
para teste de cosméticos na União Europeia. Mas a sua repercussão é
especialmente clara ao nível social e na modificação de padrões de consumo nos países
mais desenvolvidos, com a recusa por partes da população da compra de produtos
de origem animal, por exemplo no vestuário, assim como o notório e muito significativo
alargamento do vegetarianismo e do veganismo.
Em
termos estritamente políticos, o animalismo não foi tão bem-sucedido quanto o
ambientalismo. Os partidos animalistas surgiram na Europa apenas no final do
século XX e início do nosso século. Defendem de igual forma ideias de bem-estar
animal e direitos dos animais. Procuram influenciar as políticas públicas no
mesmo sentido já defendido pelos ativistas do animalismo nas diversas
associações que precederam a constituição dos partidos animalistas. Em França,
na Inglaterra ou em Espanha, por exemplo, têm-se notabilizado por campanhas
específicas contra as praticas da pecuária industrial, a caça ou os espetáculos
com animais. Mas o partido animalista melhor sucedido até ao momento é
porventura o holandês.
No
caso português, a preocupação com a crueldade animal data de 1875 e da criação
da Sociedade Protetora dos Animais, numa altura em que as associações zoófilas
se espalhavam pelo mundo, mas ainda assim com alguma precocidade. Portanto, a
causa animalista organizada em Portugal é antiga.
Em
termos políticos, o Partido pelos Animais foi fundado na primeira década do
século XXI e desde cedo estabeleceu relações com os restantes partidos
animalistas na Europa. O partido acabou por ser registado no Tribunal
Constitucional como Partido pelos Animais e pela Natureza (PAN) e mudou de
designação em 2014, mas mantendo o mesmo acrónimo, passando a chamar-se
Pessoas-Animais-Natureza. Não por acaso, o primeiro presidente do partido foi
um filósofo, Paulo Borges, especialmente preocupado com a ética animal, mas
também com as Filosofias Orientais, que parecem enquadrar-se bem com a sugestão
panteísta do acrónimo do partido.
A
simples evolução do nome do partido é uma boa pista para o modo como o seu
animalismo inicial foi abrindo à preocupação geral com os ecossistemas e as
pessoas. Mas pode também ser enganadora. A base do partido é animalista, mas a inteligência
política dos seus corpos dirigentes levou a retirá-lo de uma esfera na qual
dificilmente poderia crescer eleitoralmente para um mainstream no qual a causa
ainda minoritária do animalismo se cruza e funde com um ambientalismo centrado
nas pessoas (daí a nova designação) e hoje em dia já maioritário, e ainda o
apelo à natureza e aos ecossistemas, que parece indicar também uma ligação com
as ideias ecocêntricas de que falaremos no próximo apartado deste artigo. Por
isso surgem facilmente no discurso do partido os temas dos direitos humanos, do
aquecimento global, etc., fazendo-o surgir como mais um partido ecologista em
geral, do que especificamente animalista.
3.
O ecocentrismo
Por
“ecocentrismo” entendemos aqui a perspectiva ética que acentua a centralidade
dos próprios ecossistemas, ou da biosfera no seu conjunto, em relação aos seres
humanos e aos animais sencientes. Se o animalismo descentra o antropocentrismo
inicial do ambientalismo, o ecocentrismo dá um passo mais adiante ao fazer da própria
natureza um sujeito ético. A natureza no seu conjunto deixa de ter valor apenas
instrumental e adquire valor intrínseco. O representante mais qualificado desta
visão é porventura Callicott.
Poderíamos
distinguir entre esta visão e uma perspectiva ligeiramente mais limitada, a do
biocentrismo, cuja preocupação ética se estende a tudo o que é vivo, indo assim
também além do animalismo, mas ficando aquém da perspetiva mais abarcante do
ecocentrismo. Note-se, apenas de passagem, que este biocentrismo, tendo embora
expressões filosóficas relevantes (e.g. em Paul Taylor), é mais comum em perspetivas
religiosas orientais e, no contexto cristão, por exemplo num autor como Albert
Schweitzer.
Uma
outra distinção possível é entre o ecocentrismo moderado, por assim dizer, e a
visão mais radical da “ecologia profunda” (“deep ecology”), como a que podemos
encontrar no filósofo norueguês Arne Naess. A partir dos anos setenta, Naess
desenvolve uma visão ética e ontológica de carácter holista que advoga um
igualitarismo extremo de todas as formas de vida (próximo do biocentrismo), mas
também uma transformação radical da sociedade e do próprio homem, com
inspiração em teorias holísticas da espiritualidade oriental.
O
ecocentrismo, por vezes acompanhado de considerações originárias do
biocentrismo ou da ecologia profunda, é influente nas políticas públicas que
visam o equilíbrio dos ecossistemas, mais do que o bem-estar dos animais
sencientes ou o desenvolvimento económico. Trata-se por isso de uma ideologia
bastante presente nos serviços de proteção da natureza e noutros organismos
governamentais centrado na preservação dos ecossistemas enquanto tais.
Ao
nível da sociedade civil, o ecocentrismo encontrou uma enorme aceitação em
organizações não governamentais de proteção da natureza. A mais conhecida e
influente de todas elas, a Green Peace,
tem através dos seus fundadores um claro cunho ecocentrista. Trata-se aqui de
salvar o planeta no seu conjunto, a totalidade dos ecossistemas, mais do que
cuidar de seres humanos ou animais não humanos específicos. Mas é em movimentos
mais radicais que o pensamento ecocêntrico é mais claramente reclamado, como no
caso da organização Earth First!, nos
Estados Unidos.
Enquanto
ideologia política, o ecocentrismo tem um influxo mais direto na América Latina,
onde deu origem a movimentos políticos que combinam a ética ecocêntrica com
visões indígenas sobre a Pachamama, a
deusa da fertilidade que é também a Mãe Terra ou a Mãe Natureza. Na Bolívia e
no Equador, por exemplo, o ecocentrismo, relacionado com a Pachamama tem uma presença significativa na esfera pública.
Mas
é bastante claro que os partidos ocidentais que tiveram a sua origem no
ambientalismo antropocêntrico ou no animalismo, como os referidos mais acima,
muitas vezes adotaram posições que incluem também perspetivas ecocêntricas.
Veja-se, entre nós, o caso do PAN. No seu Manifesto está patente a origem
animalista do partido, mas essa origem é combinada ´com a defesa antropocêntrica
das causas humanitárias e a melhoria das condições de vida dos seres humanos,
em harmonia com as demais espécies e a natureza, assim como com a proteção dos
ecossistemas e da biosfera no seu conjunto, como é próprio da visão
ecocêntrica.
Reflexão final: o ecologismo
como ideologia política
A
ideologia ecologista é um bom exemplo da forma diferenciada como as ideias se
combinam e operam ao nível da prática política, por comparação com os níveis
mais intelectualizados da filosofia e da ética.
As
ideologias são compostas por uma série de conceitos-chave que se combinam entre
si de uma forma que é pelo menos aparentemente convincente e que, sobretudo,
tem a capacidade para mobilizar largos grupos de indivíduos para a ação
política. Destarte, as ideologias são sempre sincréticas, combinando e
absorvendo ideias de diversas proveniências, muitas vezes à partida
incompatíveis. Por isso nos partidos ecologistas atuais, incluindo em Portugal,
os apelos à preservação ambiental e ao desenvolvimento sustentável, numa visão
aparentemente antropocêntrica, se combinem com as questões do bem-estar e dos
direitos dos animais, com a preservação ecocêntrica da biosfera ou dos
ecossistemas no seu conjunto, ou ainda com outras causas paralelas como a paz,
o desarmamento, o combate à pobreza global, o feminismo, o multiculturalismo,
etc. (e, à direita do espectro político, o tradicionalismo, a defesa do mundo
rural e das suas práticas, a religião tradicional, a monarquia, etc.).
No
fundo, os partidos ecologistas correspondem assim a preocupações reais das
pessoas comuns, menos interessadas em distinções teóricas do que nas consequências
que observam na sua vida ao nível da degradação da natureza circundante, da
poluição dos territórios em que habitam, do aquecimento global e dos ventos
catastróficos do clima, dos maus tratos aos animais, e por aí adiante. Aquilo
que parece diferente ou mesmo antagónico na teoria pode confluir na prática,
pelo menos na maior parte das circunstâncias.
Numa
análise comparada das ideologias, o ecologismo, nas suas múltiplas declinações,
é o que podemos chamar uma micro-ideologia de carácter transversal. Se as
macro-ideologias modernas (conservadorismo, liberalismo e socialismo) podem
surgir em múltiplas formas, na medida em que elas próprias se dividem em várias
micro-ideologias (por exemplo, no caso do socialismo: marxismo-leninismo,
maoismo, social-democracia ou socialismo democrático, etc.), outras ideologias
há que são independentes e menos abarcantes, mas podem ficar associadas a essas
macro-ideologias. É o caso do ecologismo (outro exemplo seria o nacionalismo).
O
ecologismo é uma micro-ideologia transversal na medida em que pode ficar
associado pelo menos ao conservadorismo, ou ao socialismo. O caso do
liberalismo é mais difícil na medida em que este resiste às regulamentações
legais e estatais que permitem combater os problemas que o ecologismo enfrenta.
Ainda assim, podemos encontrar a ideologia ecologista à esquerda ou à direita
do espectro político. Embora o ecologismo de esquerda seja porventura mais
visível, a verdade é que encontramos versões do ecologismo à direita, de forma
igualmente consequente. Portugal é um exemplo disso, como acima se referiu.
Tal
como na análise das ideologias em geral, em relação ao ecologismo é também
possível encontrar versões moderadas e extremistas. Assim, se existem
movimentos e partidos que participam no jogo democrático-constitucional, há
também movimentos de tipo extremista, que negam a possibilidade da salvação do
planeta no quadro vigente da democracia liberal e da economia de mercado. É
certamente o caso dos movimentos ecofascistas, por vezes diretamente inspirados
no nazismo, do ecoanarquismo, assim como, de forma diferente, das manifestações
de ecoterrorismo que foram sugindo (recorde-se o caso do Unabomber, nos Estados Unidos).
Aquando
da constituição dos primeiros partidos ecologistas, a partir dos anos setenta
do século XX, e da entrada do ecologismo como ideologia de combate político na
esfera pública, muitos se apressaram a dizer que o ecologismo iria colocar em
causa a democracia instituída e constituía um perigo para as liberdades dos
cidadões. Mas se isso se aplica com propriedade aos extremismos, e ainda mais
aos caos de terrorismo, não parece ser de todo verdade em relação ao ecologismo
em geral.
Hoje
podemos verificar que a maior parte dos movimentos e partidos ecologistas se
integrou no jogo democrático, conseguiu eleger representantes e até chegar à
esfera da governação. Entretanto, como reação face à possibilidade de grandes
perdas eleitorais, os partidos tradicionais, de direita e de esquerda, passaram
a integrar nos seus programas e nas suas agendas políticas os temas que os
ecologistas defendiam.
Assim,
podemos considerar que o ecologismo é hoje uma ideologia política de sucesso,
quer nos partidos que dela se reclamam, quer nos outros partidos tradicionais
que a procuram absorver. Face ao declínio destes partidos tradicionais em
muitos países europeus e não só, será interessante acompanhar de que forma no
futuro próximo os novos partidos populistas se posicionam em relação aos temas
do ecologismo.
Mas
é desde já interessante verificar a luta que se estabeleceu, nos Estados
Unidos, entre o Partido Republicano no mandato do atual presidente Trump e as
causas mais relevantes do ecologismo. Trata-se de um caso bastante peculiar,
mas muito influente por se tratar dos Estados Unidos, de ataque agressivo ao
ecologismo e mesmo aos dados das Ciências do Ambiente e do Clima. Outra questão
a acompanhar no futuro, face ao crescimento da importância da Ásia e, em
especial, da China no quadro económico e geoestratégico mundial, é o modo como os
graves problemas ambientais desses países poderão levar à contestação social,
mesmo num sistema ainda pós-totalitário como o da República Popular da China,
em nome das causas ecologistas.
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Álvaro Vasconcelos*
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Nunca
como antes, desde a derrota do comunismo, esteve a democracia liberal perante
um ataque tão generalizado. Não tinha razão Francis Fukuyama ao anunciar, em
1989, com a desintegração da União Soviética, o fim da História — “O fim da
evolução ideológica da humanidade e a universalização da democracia liberal
ocidental como a forma última de governo”[1].
Se a forma como a democracia liberal se tinha espalhado pelo Mundo, desde a revolução portuguesa de 25 de abril de 1974, parecia dar razão a Fukuyama, logo nos anos 90, nos Balcãs, emergiu o nacionalismo identitário como alternativa ideológica à democracia liberal.
A arrogância implícita na afirmação de Fukuyama viria a servir de pretexto aos neoconservadores americanos para considerarem que tinha chegado o momento de impor pela força a democracia ao mundo e, com ela, a hegemonia americana, o que levou à tragédia da invasão do Iraque na presidência Bush. O que muito contribuiu para o refluxo democrático a que assistimos.
O
nacionalismo identitário, apesar de derrotado nos Balcãs, não mais desapareceu
do primeiro plano do debate político, quer sob a forma de radicalismo islâmico
nos países do Médio Oriente, quer nas democracias ocidentais na forma de
populismo identitário abertamente antiliberal.
Viktor
Orbán, primeiro-ministro húngaro, afirmou que a Hungria se vai transformar num
“Novo Estado Iliberal baseado em fundações nacionais”. Ou seja, o que ele põe
em causa não é a organização de eleições democráticas, mas a verdadeira
essência da democracia, isto é, um regime que garanta as liberdades de todos e
que coloca o Homem e os seus direitos políticos e sociais no centro das
políticas públicas. O iliberalismo de Orbán é partilhado por líderes políticos
como Bolsonaro, Trump, Erdogan, Putin, Modi, e ainda por variados partidos de
extrema-direita na Europa, no poder e na oposição. O mais grave é que esses
líderes populistas nacionalistas chegaram ao poder pelo voto, apoiados no
descontentamento de sectores importantes da classe média um pouco por todo o
mundo. Como salienta Yascha Mounk, “A Democracia liberal, a combinação única de
direitos individuais e poder do povo que caracteriza de há muito a maioria dos
governos da América do Norte e da Europa Ocidental, parece estar a
desconjuntar-se”[2],
ou seja, a realizar-se uma fratura entre as suas duas componentes essenciais: a
liberdade e o voto popular.
Assistimos
a uma revolta de sectores importantes do eleitorado que exigem que a sua voz
seja ouvida e que, pelo voto, sejam capazes de impor alternativas reais de política
económica, em particular.
O
que é paradoxal e desconcertante é que esses cidadãos descontentes com os
representantes das democracias liberais, porque eles não os ouvem, elegem
dirigentes políticos que no poder vão coartando a sua liberdade de expressão e
o Estado de direito. Com a censura e poder pessoal dos líderes, e sem limites
legais, as eleições deixam de ser livres e as democracias iliberais desses
estados, como a Rússia, tornam-se tiranias, num processo que tem sido chamado
de autocratização.
A Rússia é um trágico exemplo de um dos
primeiros processos de autocratização do pós-queda do Muro. É o que se está a
passar, por exemplo, na Hungria, onde Orbán tem vindo a controlar os media
e a torná-los uma caixa de ressonância das suas políticas, e a introduzir
legislação que põe em causa a independência do sistema judiciário e o Estado de
direito, como aliás na Polónia.
Só
nas democracias liberais existe liberdade de acesso à Internet e de
publicação nas redes sociais. Nos regimes autoritários, como o da Rússia de
Putin, o do Egito do General Sisi ou o da China, tudo é feito para impedir a
liberdade de expressão, e tanto a Internet de uma forma geral como as
redes sociais, de uma forma particular, são transformadas numa máquina poderosa
de controlo dos cidadãos, o que coloca o horizonte da destripa de uma sociedade
totalitária digital.
A vontade de participação
Uma
das características desta vaga nacionalista populista é que ela corresponde a
uma vontade e capacidade crescente dos cidadãos para participarem na vida
pública. Cidadãos empoderados em consequência da emergência da classe média, da
saída da pobreza de milhões de indivíduos, da emancipação das mulheres, da
universalização das tecnologias de informação e do progresso na educação e na
saúde.
Aqueles
cidadãos empoderados assumem, designadamente através das redes sociais, a
“liberdade de palavra” sobre todas as questões da vida pública — uma nova
isegoria[3].
A isegoria, o direito igual à palavra, antecede o termo «democracia» na Grécia
Antiga. A liberdade de palavra para poder ser exercida sem risco de perseguição
implica a existência de um Estado que protege os cidadãos dos tiranos e dos
inimigos, em geral. O herói Teseu, nas Suplicantes de Eurípedes, ao
fazer o elogio da democracia, afirma:
“Nada
é mais nocivo à polis do que o tirano.
Sob
o seu domínio não existem leis válidas
para
todos: apenas um homem detém o poder,
instituindo-se
em lei própria. Desse modo nunca há igualdade.”
A
liberdade de expressão é assim a primeira das liberdades e o alicerce da
democracia. Amartya Sen[4]
defende que a democracia indiana, é herdeira da tradição de argumentação
contraditória sobretudo, bem presente no Mahabharata[5]
e defende que as “eleições, essenciais para que um regime possa ser considerado
democrático, são um meio para tornar eficaz as discussões públicas, quando a
possibilidade de votar se combina com a possibilidade de falar e de escutar sem
medo”[6].
Nos regimes ditatoriais como era o português, antes do 25 de Abril, a censura e
a polícia política eram os principais instrumentos do regime para se manter no
poder e calar a dissidência.
A
liberdade de pensamento que “na calada da noite” da ditadura afloram aos
amantes da liberdade, que enfrentam a angústia de a não terem. “Como é difícil
acordar calado”, escreveu, na canção Cálice, Chico Buarque, em plena
ditadura militar[7].
A
liberdade de informação, a par com o Estado de direito, é um instrumento
essencial para controlar a ação governativa e dos demais servidores do Estado.
Muitos cidadãos indignam-se com a corrupção nas democracias, exatamente porque
a liberdade de informação, incluindo de investigação jornalística, permite a
denuncia dos crimes e a independência do judiciário o seu julgamento. Na
ditadura salazarista a corrupção era sistémica, mas a possibilidade de a
denunciar e de julgamento dos crimes cometidos pelos servidores do estado quase
nula. O mesmo se passou no Brasil durante a ditadura militar. O índex de
corrupção no mundo, elaborado anualmente pela Transparency International[8],
mostra que os países menos corruptos são as democracias liberais. Entre os 20
países menos corruptos, ainda de acordo com o índex da Transparency International, 14 são membros da União Europeia.
A
liberdade de expressão, protegida pela lei, é o que permite a formulação de
políticas públicas que correspondam aos interesses dos cidadãos, nomeadamente
dos mais desfavorecidos. Essa é a superioridade da democracia liberal sobre
todos os outros sistemas. Nas democracias iliberais os cidadãos exprimem a sua
vontade uma vez, pelo voto, depois a sua voz é calada e substituída pela voz do
líder tornado em figura mítica com quem se identificam, enquanto não se
consciencializam do logro em que caíram, como acontece no Brasil de Bolsonaro.
Onde antes havia um debate crítico sobre tudo agora há a voz do líder, e dos
interesses do grupo que ele representa, e uma clivagem tão radical na sociedade
que toda a conversa séria para informar a decisão e criar consensos se torna quase
impossível.
D.
António Ferreira Gomes, Bispo do Porto, num célebre pró-memória dirigida ao
ditador Salazar, faz uma relação explícita entre a falta de liberdade,
nomeadamente sindical, e a miséria em que vivia a maioria da população
portuguesa. Escreve que viajou pelas democracias europeias aflito com o então
“exclusivo privilégio português do mendigo, do pé-descalço, do maltrapilho, do
farrapo” e com as “mais altas médias de subalimentados…”. Sublinha que “os
frutos do trabalho comum devem ser divididos com equidade e justiça social
entre os membros da comunidade, quer no ponto de vista dos indivíduos quer no
dos sectores sociais (e aqui podemos pensar especialmente na lavoura e na
miséria do trabalhador do campo)”, mas também que esse problema só se resolve
quando todos os cidadãos “experimentarem que são colaboradores efetivos, que
têm a sua justa quota-parte na condução da vida colectiva, isto é, que são
sujeito e não objecto da vida económica, social e política”[9].
Estas palavras, que lhe valeram o exílio, escritas a 13 de julho de1958 em
plena campanha eleitoral das eleições presidenciais — com Humberto Delgado como
candidato da liberdade — eram defesas inequívocas da superioridade da
democracia sobre a ditadura. A liberdade política, isto é, a democracia era a
condição do progresso social, a negação da política era sinónimo de negação da
liberdade: “negação da livre e honesta atividade política é também uma
política; apenas, má política.”, escreveu no seu pro-memória.
A
revolução portuguesa de 25 de Abril de 1974 veio dar plenamente razão ao
liberal Bispo do Porto. Com a consolidação da democracia liberal, foram ouvidos
e tomados em consideração, pelas políticas públicas, os interesses das camadas
mais desfavorecidas da sociedade portuguesa. O Portugal de elevados índices de
subalimentação e de mortalidade infantil tornou-se num país muito mais justo.
Em 1970, morriam, em média, em Portugal, 55,5 crianças em 1000 nado-vivos, no
primeiro ano de vida. Em 2013 a média situava-se nas 2,9 crianças[10].
A democracia trouxe a necessidade de os políticos responderem aos anseios da
maioria da população através de políticas públicas, designadamente, no domínio
da saúde e da educação.
A
revolução portuguesa marcou também o início de um processo de democratização que
nos anos 80 se espalhou pela América Latina, incluindo o Brasil.
Quando
a democracia liberal brasileira está sob ataque do populista nacionalista
Bolsonaro é importante lembrar, como o faz Renato Janine Ribeiro, que desde o
fim da ditadura militar, nas últimas três décadas, se promoveu uma inclusão
social sem precedentes na História do Brasil[11]
. Para Renato Janine Ribeiro, o liberalismo, para ser genuíno, pressupõe
“igualdade de oportunidades, para que todos floresçam, o que exige uma forte
redução das desigualdades sociais”[12].
O Brasil da ditadura não era um país pobre, mas um dos países mais injustos do
mundo, em que um grupo da população vivia como nos países mais desenvolvidos do
mundo e a maioria (cerca de 64%) como nos países mais pobres. A evolução do
coeficiente Gini, em que 0 seria ausência de desigualdade, é bastante
significativa. Durante os anos da ditadura a desigualdade aumentou, passando de
0,53 (em 1960) para 0,58 (em 1979). Apesar do crescimento económico, nos anos
de democracia diminuiu tendo atingido 0,52 em 2013. Entre 1993 e 2011, 60
milhões de brasileiros terão saído da pobreza e integrado a classe média, tendo
provimentos entre USD400 e USD1300, constituindo o que Marcelo Neri, chamou de
nova classe média.[13]
Na
Tunísia pós-ditadura “os direitos das mulheres, sociais, ecológicos e das
minorias são não só garantidos pela Constituição, como a democracia permitiu o
desenvolvimento de uma sociedade civil ativa e influente”, sem medo, dadas as
garantias dadas à liberdade de imprensa e de consciência – sublinha Azzam
Mahjoub, formou-se uma “autêntica opinião pública cada vez mais escutada e que
assume todas as grandes questões da sociedade.”[14]
O
que é paradoxal é que esta ofensiva populista da extrema-direita contra a
democracia liberal retoma algumas das críticas que uma parte da esquerda sempre
fez à democracia liberal, a de ela ser o regime que, ao preservar o liberalismo
económico, perpetua a exploração do homem pelo homem e a desigualdade social.
Ora, o que a experiência portuguesa, e de outras democracias europeias, mostra
é que é possível, em democracia liberal, procurar a síntese entre liberalismo
político e económico e justiça social. Esta procura foi a agenda da social
democracia e de parte da democracia cristão no pós-II Guerra Mundial e permitiu
conquistas sociais muito importantes, como a universalização dos serviços de
saúde e da educação.
O
Partido Comunista e os seus aliados, durante a transição democrática em
Portugal, contrapunham à democracia liberal, que predominava nos demais países
da Europa ocidental, a “democracia socialista”, segundo eles vigente na União
Soviética. Edgar Morin, que veio a Portugal em plena crise de 1975, insurgia-se
no Nouvel Observateur contra a ideia de que para haver igualdade social
era preciso coartar a liberdade – “(...) a ideia de que é preciso pagar com a
privação da liberdade um pouco de igualdade deve ser denunciada como um mito
revolucionário”.
O
consenso que saiu da transição portuguesa ficou espelhado na Constituição: “A
República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania
popular, no pluralismo de expressão e organização política democrática, no
respeito e na garantia de efetivação dos direitos e liberdades fundamentais e
na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia
económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa”
[15].
Resgatar a democracia liberal
Tucídides
define a democracia no discurso fúnebre de Péricles: “a nossa constituição
chama-se democracia porque o poder está nas mãos não de uma minoria, mas de
todo o povo”[16].
A
crise de legitimidade da democracia liberal nasce por ter aparecido aos olhos
de muitos como raptada por uma minoria que impediria que pelo voto se
exprimisse a vontade dos cidadãos eleitores, convicção que na Europa se
aprofundou com a crise financeira de 2008 e com a imposição de medidas de
austeridade pela União Europeia, nomeadamente aos países da Europa do Sul. A
forma como a União Europeia rejeitou os resultados do referendo grego de 5 de
julho de 2015, sobre o programa da Troika, para fazer face à crise da dívida
grega, é apontada por muitos como a prova do desprezo pela vontade popular.
Tanto mais que a justificação para impor a austeridade, contra a vontade dos
eleitores, foi a de que essa era a vontade dos mercados, ou seja, dos grandes
grupos financeiros, criando assim a convicção de que no quadro do sistema não
existem alternativas ao modelo neoliberal. Para os sectores dominantes da
finança internacional e para os políticos que financiam, porque servem os seus
interesses, o «liberalismo» foi-se reduzindo, cada vez mais, a liberalismo
económico, na sua versão neoliberal. O apoio que, no Brasil, muitos “liberais”
dão a Bolsonaro e ao seu ódio ao liberalismo político é disso prova evidente.
Em
suma, os dirigentes das democracias liberais são acusados de terem abandonado a
agenda social do pós-guerra, de terem posto em perigo as suas conquistas mais
importantes no domínio da saúde e da educação e de terem permitido um aumento
significativo da desigualdade. Importa lembrar Indignez-vous! –
publicado em 2010 por Stéphane Hessel, antigo membro do Conselho Nacional da
Resistência Francesa – manifesto que alerta os jovens para duas componentes
essenciais da cidadania: a capacidade para se indignarem e o imperativo da
mobilização cidadã.
As
democracias liberais para derrotarem o populismo têm de assumir que tal
indignação é legítima e virtuosa, e que é condição da renovação democrática.
Têm de assumir, como uma conquista da democracia, do liberalismo político, a
vontade de participação dos cidadãos e a sua crescente capacidade para
participar no debate público. Em suma, o seu empoderamento pela sociedade da
informação e a educação.
Hoje
os cidadãos exigem uma democracia mais participativa, mais capaz de, pela
discussão, construir a vontade do “povo todo” — conceito fundamental de uma
democracia deliberativa, de que fala Habermas e que implica envolver no debate,
que antecede a tomada de decisão, os cidadãos e as organizações da sociedade
civil.
Para
tanto é necessário que as decisões sejam tomadas através de um debate
informado, que não seja dominado por fake news, por desinformação, nem
pelo discurso de ódio que impede a formação de consensos.
Durante
a ditadura portuguesas muitos fizeram a aprendizagem das regras da democracia,
nas associações estudantis, culturais ou mesmo desportivas, para o que
contribuiu o Guia das Assembleias Gerais de Roque Laia. Como o próprio
escreveria no prefácio da edição que publicou já depois do 25 de Abril “Não
basta decidir em conjunto. É necessário resolver democraticamente; decidir
através de processos democráticos.”[17]
Um desses processos compreendia que antes de qualquer votação o Presidente da
Assembleia Geral perguntasse se estavam todos esclarecidos e, se não estivessem,
que fosse reaberto o debate.
O
voto esclarecido é a condição essencial para o triunfo da boa política.
Nos
dias de hoje, para ser possível o voto esclarecido, para ser possível uma
democracia mais participativa, torna-se necessário regular a Internet,
designadamente responsabilizando as suas imprensas pelas fake news que
publicam e criando um código deontológico para o jornalismo cidadão. É
necessário porque a Internet pode contribuir, e contribui, para a
concretização da democracia participativa, da realização da Utopia da Agora no
século xxi, mas pode também, como
vimos, ser o meio de destruição da democracia liberal. Paralelamente a esta
regulação, é preciso recusar a ideia de que o confronto é entre o “povo” e a
“elite” e que se assuma que se confrontam antes diferentes propostas e
projetos. Reduzir a conflitualidade social ao confronto do “povo” e das
“elites” é profundamente redutor e muitas vezes errado. As elites económicas,
políticas, culturais e intelectuais, muito diversas, não são animadas pelos
mesmos interesses e opções, aliás o mesmo se pode dizer do povo. À noção retórica confusa, imprecisa, por vezes étnica
de povo devemos opor a da cidadania capaz de afirmar opções majoritárias, pelo
debate livre, contraditório e informado das diferentes alternativas.
Colocar o Homem no centro
Na
Odisseia, Ulisses recusa a eternidade nos braços de Calipso, a
ninfa do mar, e prefere o regresso a Ítaca. “Para Jacqueline de Romilly é
impossível imaginar um Universo mais deliberadamente cerrado sobre o homem”[18].
Esta afirmação da Humanidade é um ato fundador da civilização helénica e da
democracia. Ulisses não afirmou apenas a sua humanidade, afirmou também o seu
desejo de liberdade — conceitos que, desde o início da Democracia, se
confundem.
As
democracias liberais foram consolidando um enorme património no domínio de
valores com o objetivo de colocar o homem no centro: o da liberdade herdeira
dos sonhos utópicos do iluminismo, os da justiça social dos socialistas do
século xix, os da igualdade de
todos os seres humanos na sua enorme diversidade de culturas e crenças, o da
recusa de todas as formas de racismo, do pós II Guerra Mundial, o da utopia da
igualdade de género nascida da desconstrução da sociedade patriarcal na grande
revolução cultural dos anos 60, de que o Maio de 68, em Paris, foi o epicentro.
Nos anos 90, perante o regresso da barbárie dos crimes contra a Humanidade,
como na Bósnia e no Ruanda, surge o conceito de “segurança humana” que coloca a
proteção do indivíduo e do seu direito à vida no centro da política de
segurança das democracias liberais.
A
ideia da Humanidade Comum foi-se impondo nas democracias liberais, na recusa da
indiferença pelo sofrimento do outro, na obrigação de solidariedade e na recusa
de toda a forma de discriminação e racismo. Hoje o conceito de Humanidade Comum
estende-se à preservação da vida na terra, a uma forma de patriotismo
planetário.
Estas
conquistas das democracias liberais estão hoje ameaçadas pela corrente
dominante do populismo identitário, que é regra geral extremamente conservador.
Para os populistas aquelas conquistas no domínio dos direitos fundamentais,
nomeadamente o direito à igualdade e o princípio da hospitalidade, ameaçam, em
nome de um perigoso politicamente correto, a cultura tradicional. Exemplo deste
pensamento é a declaração de Donald Trump, durante a sua campanha eleitoral, de
que o grande problema da América “é ser politicamente correta”. A presidência
Trump mostra bem que o seu politicamente incorreto é a recusa dos direitos das
minorias, nomeadamente dos emigrantes e da diversidade cultural, é a recusa da
ecologia e a negação das mudanças climáticas. Ao discurso do politicamente
correto os populistas identitários contrapõem o discurso distópico de um
regresso a um mundo de dominação ocidental da supremacia branca, alegadamente
“ameaçada pelo multiculturalismo” e pela ciência.
O
que é mais perturbador é que a recusa da ideia da Humanidade Comum, não vem só
da extrema-direita, foi-se banalizando para outros sectores da sociedade
incluindo para sectores das grandes famílias democráticas de esquerda e de
direita, nomeadamente nas políticas antimigrantes e islamofóbicas.
O
que torna a resposta mais difícil é que os populistas identitários se apoiam na
nostalgia de sectores da classe média de um passado patriarcal, de uma vida de
certezas, aparentemente, pacífica. Sonham com um regresso impossível a um
passado que virou quimera, uma perigosa nostalgia, a que Zygmunt Bauman
(1925-2017), chamou de retrotopia. A adesão ao populismo identitário é
maior nos sectores da classe média inquieta com o seu futuro e que tem sido
menos beneficiada pelo progresso tecnológico.
Conciliar
os cidadãos com a enorme diversidade em que vivem é, talvez, a mais difícil das
tarefas para derrotar o populismo. Se devemos dar razão à sua indignação
social, o mesmo não podemos fazer face à sua recusa dos progressos no domínio
dos direitos fundamentais.
Alguns
consideram que a questão se resolve se as razões da sua indignação social forem
atendidas, mas outros pensam que será insuficiente, porque o seu atavismo
identitário persistirá. A Polónia e a Hungria são disso exemplos, países
europeus onde o progresso social e económico foi maior e onde o populismo
identitário é mais influente. Em Portugal, profundamente afetado pela crise de
2008 e pelas políticas de austeridade, o sucesso, é, até agora, diminuto.
Creio
que a solução está no aprofundamento da democracia, em pôr fim à polarização
entre os sectores liberais e conservadores da sociedade, de forma a que todos
participem na mesma conversa democrática, nos mesmos processos deliberativos.
Assim as elites liberais deixarão de desconfiar dos cidadãos e de lhes retirar,
de facto, o direito de voto. É verdade que os populistas identitários querem
destruir o liberalismo, mas é igualmente verdade que as elites liberais têm
enfraquecido a democracia. É preciso pois reconciliar democracia com liberdade.
São
as razões que levaram ao poder os populistas identitários que os podem
derrotar. Eleitos com o slogan de devolver o poder ao povo, dirigentes
políticos como Boris Johnson ou Salvini, procuram concentrar cada vez mais
poder assim que chegam ao governo. Em Itália, Salvini provocou a queda do seu
governo e declarou: “Eu peço aos italianos todos os poderes”. No Reino Unidos,
Boris Johnson, mal assumiu a pasta de primeiro-ministro, pediu a suspensão do
Parlamento para impedir que os deputados pudessem travar o seu projeto de
abandonar a União Europeia sem acordo. Em ambos os casos choveram acusações de
tiranos sobre os dois líderes populistas e o seu futuro político tornou-se mais
incerto.
É
na concretização plena da democracia liberal que está a solução para travar os
processos de autocratização. Uma Utopia? Certamente, mas uma utopia realizável.
[2] Yasha Mounk, The
people vs Democracy, Harvard University Press (3/5/2018), Kobo EPUB
[5] Mahabharata é um poema épico indiano, considerado um dos textos
fundadores do hinduísmo.
[6]
Ver Amartya Sen, La Démocratie des autres, Rivage poche,
Paris, 2006
[7] Cálice, 1973
“Como é
difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa”
[8] https://www.transparency.org/cpi2018
[10]
Acessível em
https://notapositiva.com/evolucao-da-taxa-mortalidade-infantil-portugal/#
[11] Renato Janine Ribeiro, depoimento para este artigo, 26 de agosto
de 2019
[12]
Renato Janine Ribeiro, idem.
[13]
Ver Álvaro Vasconcelos(org.) Brasil nas Ondas do Mundo, Editora da Universidade
Federal de Campina Grande, Imprensa da Universidade de Coimbra,2017
[14]
Azzam Mahjoub; depoimento para este artigo, 31 de agosto de 2019
[16] Tucídides, History
of the Peloponnesian War, Penguin Books, 1972, pág. 145
[18] Jacqueline de Romilly,
Pourquoi la Grèce, Edition de Fallois, 1992, pg.32
|
António Ary SJ*
|
Introdução: um desafio pastoral
Um artigo recente do jornal Le Monde,
centrado no casamento de "católicos não praticantes", referia um
estudo demográfico segundo o qual, em França, em 2014, 56 por cento dos casais
que escolheram casar na Igreja não o fizeram por convicção religiosa. Este dado, embora questionável, expressa uma realidade
sociológica característica das sociedades ocidentais, sujeitas a um importante
processo de descristianização. Nesse contexto, põe-se o problema dos batizados
que nunca foram realmente iniciados na fé, ou que a abandonaram, e recorrem à
Igreja para a celebração de um casamento canónico, geralmente escolhido por
razões não religiosas.
Perante esta situação – nova, sobretudo pela sua
extensão – a Igreja, e os seus pastores em particular, têm procurado soluções
para atender à necessidade de proteger a santidade do sacramento, sem
comprometer o direito fundamental ao casamento, bem como o imperativo de
acolhimento que deve caracterizar a instituição eclesial. Nas décadas de 60 e
70 do século passado, surgiram várias iniciativas pastorais, acompanhadas de
uma ampla reflexão teológica (e, em menor grau, canónica), orientadas para a
separação entre matrimónio e sacramento no caso dos batizados sem fé,
inspirando-se na afirmação do Concilio Vaticano II segundo a qual os
sacramentos «não só supõem a fé, mas também a alimentam, fortificam e exprimem
por meio de palavras e coisas» (Constituição Sacrosanctum Concilium, n. 59). Nessa linha, a exigência de uma verdadeira convicção
religiosa dos noivos como pressuposto para a celebração do sacramento levaria,
por um lado, a negar o acesso ao casamento canónico aos não-crentes
batizados e, por outro, convidaria ao reconhecimento do seu casamento civil,
sem caráter sacramental.
Em 1977, a Comissão Teológica Internacional
publicou uma reflexão sobre o sacramento do matrimónio, na qual algumas afirmações
pareciam acompanhar a exigência da fé como requisito para a celebração válida
do matrimónio sacramental: «Se não há nenhum sinal de fé como tal (no sentido
do termo “crença”, disposição para crer), nem qualquer desejo da graça e da salvação,
surge a questão de saber se realmente o casamento é ou não validamente celebrado.
A fé pessoal das partes não é o fundamento da sacramentalidade do casamento,
mas a ausência de fé compromete a validade do sacramento».
Nesta linha, o Sínodo dos Bispos de 1980, pediu ao
Romano Pontífice para aprofundar a relação entre fé e matrimónio sacramental,
sugerindo a possibilidade de refletir acerca do papel da fé dos noivos para a
validade do sacramento e da admiibilidade de um casamento não-sacramental e
para os não crentes batizados.
Mais recentemente, no contexto do duplo Sínodo sobre a família de 2014 e 2015,
surgiram novas tentativas para levar a uma reorientação da doutrina tradicional
sobre a sacramentalidade do casamento. Em resposta, o
Papa Francisco publicou em 15 de agosto de 2015 o documento Mitis iudex
Dominus Iesus (MIDI), com a reforma do processo canónico para a declaração
de nulidade do casamento. Entre as novidades, surge a possibilidade de um «processo
mais breve diante do bispo» a ser aplicado nos casos em que a nulidade do
casamento invocada é sustentada por argumentos particularmente óbvios.
No artigo 14 §1 das Regras de procedimento que acompanha o MIDI se
afirma que «entre as circunstâncias que podem permitir o tratamento da causa de
nulidade do matrimónio através do processo mais breve, contam-se, por exemplo:
aquela falta de fé que pode gerar a simulação do consentimento ou o erro que
determina a vontade […]».
A presente reflexão procura enquadrar esta norma
no seu húmus natural, o magistério eclesial e, em particular,
pontifício, que permite enfrentar o tema da falta de fé na celebração do
casamento de forma serena e determinada.
I. Traços fundamentais do sacramento do matrimónio
O ponto de partida para compreender o papel da fé
na celebração do sacramento do matrimónio só pode ser a doutrina jurídica e
sacramental desenvolvida e consolidada pela tradição eclesial e enraizada nos
dados bíblicos. O Código de Direito Canónico (CIC) de 1983 faz eco da definição
de casamento oferecida pelo Concílio Vaticano II como «íntima comunidade de
vida e amor» (Constituição Gaudium et Spes, n. 48) para afirmar: «O
pacto matrimonial, pelo qual o homem e a mulher constituem entre si o
consórcio íntimo de toda a vida, ordenado por sua índole natural ao bem dos
cônjuges e à procriação e educação da prole, entre os batizados foi elevado por
Cristo Nosso Senhor à dignidade de sacramento» (cânone 1055 §1). No centro do
conceito de casamento defendido pela Igreja, encontramos o consentimento dos
noivos como «ato da vontade pelo qual o homem e a mulher, por pacto
irrevogável, se entregam e recebem mutuamente» (cânone 1057 §2). É, portanto,
no objeto do contrato – ou pacto (foedus) – matrimonial que encontramos
os traços constitutivos do casamento, que a tradição elaborou sob o duplo esquema
das propriedades e dos elementos essenciais.
São propriedades essenciais do matrimónio a
unidade e a indissolubilidade, pois é a união de um homem e uma
mulher que, uma vez criada, é subtraída à disponibilidade dos cônjuges e não
pode ser dissolvida, exceto pela morte (cf. cânone 1056). Juntamente com as
propriedades essenciais do casamento, a tradição e, especialmente, a
jurisprudência da Rota Romana, desenvolveram, na esteira de Santo Agostinho, o
esquema dos «três bens»: o bem do sacramento (bonum sacramenti), que corresponde
à indissolubilidade, o bem da prole, (bonum prolis), que supõe a geração
e educação dos filhos, e o bem da fidelidade (bonum fidei), que exige a lealdade
matrimonial e a monogamia. O magistério recente dos papas trouxe ainda à luz um
quarto elemento essencial, o bem dos cônjuges (bonum coniugum), que retoma
em chave conciliar (personalista) o tradicional «fim secundário» do casamento
que era a ajuda mútua.
Estes são os elementos cuja ausência, na celebração do matrimónio, seja por
engano ou por simulação, em uma ou em ambas as partes contratantes, determina a
nulidade do casamento.
Esta caracterização essencial do casamento não é
específica do matrimónio cristão, celebrado «no Senhor» (1 Cor 7,39), mas
configura o ensinamento da Igreja acerca da aliança matrimonial como parte do
desígnio criador de Deus, desde o início (cf. Gn 2,24). De facto, as propriedades
e elementos essenciais, pertencem ao casamento natural, enquanto estrutura
antropológica fundamental e expressão da criação do homem, homem e mulher, à
imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1,26-27). A sacramentalidade do casamento
cristão não é, portanto, um elemento acrescentado à realidade natural, mas a
sua reinterpretação como «grande mistério, em referência a Cristo e à Igreja»
(Ef 5,32). O consentimento trocado entre duas pessoas batizadas não se
distingue pelo seu objeto ou requisitos essenciais, mas pelas suas consequências,
uma vez que «pela instituição de Cristo o casamento válido entre os batizados
é, na verdade, um sacramento com o qual os cônjuges estão unidos por Deus à
imagem da união indefetível de Cristo com a Igreja e são quase consagrados e
fortalecidos pela graça sacramental».
Ao constar como um dos sete sacramentos, conforme
confirmado pelo Concílio de Trento, o casamento compreende-se adequadamente dentro
da estrutura da teologia sacramental desenvolvida ao longo dos séculos.
Sinteticamente, pode-se afirmar que o consentimento, quando possui as
características acima enunciadas e é trocado de acordo com as prescrições
formais do direito canónico, determina «automaticamente» (ex opere operato)
a eficácia do ato sacramental com a criação do vínculo matrimonial e supõe, de
acordo com as disposições internas dos noivos – simultaneamente ministros e
sujeitos do sacramento – a receção da graça anexa. A doutrina sacramental
consolidada faz depender a validade do sinal sacramental da intenção do
ministro, na medida em que este pretenda «realizar o que a Igreja faz no
sacramento», independentemente da sua boa disposição interna. Os teólogos
tentaram posteriormente elucidar melhor o conteúdo dessa intenção, sem que a
questão fosse definida pelo magistério. No entanto, a necessidade de uma adesão
interna qualificada a todo o significado do ato como uma ação santa religiosa e
sacramental foi recusada, para favorecer a suficiência de uma adesão externa ao
rito da Igreja.
II. Principais pronunciamentos sobre o casamento
dos incrédulos batizados
O Santo Ofício e o Código de 1917
Até à promulgação do CIC de 1917, o problema do
casamento de cristãos sem fé tinha sido já tratado de maneira repetida e
coerente pelo Santo Ofício. Já em 1698, ao ser questionado sobre a validade e
sacramentalidade do casamento entre cristãos apóstatas, o Santo Ofício
respondeu: «Se existe um pacto de dissolubilidade, não é um casamento, nem
mesmo um sacramento; se isso não existe, é casamento e sacramento». Durante o
século XIX, a mesma Congregação – então presidida pelo próprio Romano Pontífice
– teve a oportunidade de reafirmar sua posição, em particular nas respostas a
perguntas sobre o casamento dos maçónicos. As indicações dadas têm um caráter
pastoral, deixando ao Ordinário a decisão de admitir ou não ao casamento aquele
notoriamente abandonou a fé. Tal juízo deveria ter em conta, ultimamente, o bem
das almas (salus animarum) e, portanto, se não pudesse ser evitado, o
casamento não deveria ser negado, para evitar situações de concubinato.
Esta orientação foi totalmente acolhida pela
primeira codificação canónica. De facto, o cânone 1065 §1 do CIC de 1917 previa:
§1. Os
fiéis devem ser dissuadidos de contrair casamento com aqueles que se sabe terem
deixado a fé católica, mesmo que não tenham passado para uma seita não católica,
ou estejam inscritos em sociedades condenadas pela Igreja.
§2º. O
pároco não assista a esse casamento sem antes consultar o Ordinário que,
considerando todas as circunstâncias do caso, pode permitir que ele assista ao
casamento, desde que exista um motivo sério de urgência e o mesmo ordinário
julgue prudentemente que a educação cristã da prole seja suficientemente
garantida e seja removido o perigo de perversão do outro cônjuge.
Em 1918, uma interpretação autêntica do cânone
1020 §2 do CIC de 1917, acerca das obrigações do pároco na preparação do
casamento, veio esclarecer que, quando um ou ambos os noivos se encontrassem na
ignorância da doutrina cristã, depois de esgotadas as tentativas de dar-lhes
uma breve instrução, não deveria ser recusado o casamento.
Novamente em 1949, o Santo Ofício foi chamado a pronunciar-se
acerca do casamento dos cristãos que tivessem aderido à ideologia comunista.
Depois de reafirmar o juízo severo da Igreja sobre essa doutrina materialista e
anticristã, confirmando a condenação dos cristãos que se uniram aos partidos
comunistas ou colaboraram na difusão dessa ideologia e, por isso, não deveriam
ser admitidos aos sacramentos, a Congregação reafirmou a disciplina sobre a
admissão ao sacramento do casamento, que, devido à sua natureza peculiar, não
deve, em última análise, ser negado. A validade do sacramento celebrado por
não-crentes batizados é posteriormente confirmada ainda pela jurisprudência da
Rota. Em 1943, uma sentença do relator Teodori (14.12.1943), citada
posteriormente pelo auditor Lanversin (28.2.1984), esclarece que não basta o
uso da fórmula soviética do casamento, que previa explicitamente a dissolubilidade,
para que com isso ocorra a nulidade do matrimónio por exclusão do bonum sacramenti,
mas é necessário investigar, no caso concreto, se essa foi a vontade positiva
dos cônjuges.
O magistério de João Paulo II
Como visto acima, no período pós-conciliar ganha
força a ideia de reavaliar o papel da fé na admissão e na validade do
consentimento matrimonial manifestado perante a Igreja. Esta solicitação,
contida no documento da Comissão Teológica Internacional e no documento sinodal
de 1980, obteve uma primeira resposta com a exortação apostólica pós-sinodal Familiaris
consortio de 1981. No número 68 do documento, João Paulo II aborda
diretamente a questão. Reconhecendo a diversidade no grau de maturidade na fé
dos batizados que se vêm pedir o casamento católico, o Papa reitera o
ensinamento tradicional «de admitir a celebração até mesmo aqueles que estão
imperfeitamente dispostos» (Exortação apostólica Familiaris Consortio,
n. 68).
A decisão do homem e da mulher de se
casarem segundo este projecto divino, a decisão de empenharem no seu
irrevogável consenso conjugal toda a vida num amor indissolúvel e numa
fidelidade incondicional, implica realmente, mesmo se não em modo plenamente consciente,
uma disposição de profunda obediência à vontade de Deus, que não pode acontecer
sem a graça. Portanto inserem-se já num verdadeiro e próprio caminho de
salvação, que a celebração do sacramento e a sua imediata preparação podem
completar e levar a termo, dada a rectidão da intenção deles. (Exortação apostólica Familiaris
Consortio, n. 68).
Acolhendo a reavaliação da relação entre fé e o
sacramento preconizado pelo Concílio, João Paulo II lembra que os cônjuges
cristãos, mesmo quando nunca desenvolveram ou abandonaram uma fé pessoal, «em
virtude de seu batismo, já estão realmente incluídos na Aliança conjugal de
Cristo com a Igreja e que, com a sua correta intenção, aceitaram o plano de
Deus para o casamento e, portanto, pelo menos implicitamente, consentem com o
que a Igreja pretende fazer quando celebra o casamento» (Exortação apostólica Familiaris
Consortio, n. 68). A exigência de um requisito de fé pessoal atual para a
celebração válida do casamento sacramental causaria também sérios danos à
segurança jurídica, lançando uma sombra de suspeita sobre os casamentos já
celebrados, bem como, contra toda a tradição da Igreja, sobre o casamento dos
cristãos não católicos pertencentes a comunidades eclesiais que não reconhecem
o seu caráter sacramental.
Apesar da resposta com a autoridade do magistério
pontifício, o debate continuou conduzindo a novas intervenções papais,
particularmente no contexto da alocação anual à Rota Romana. Assim, o próprio
João Paulo II, em 2001, lamentou «a tentativa de revitalizar o aspeto
sobrenatural do casamento também por meio de propostas teológicas, pastorais e
canónicas estranhas à tradição, como a de exigir a fé como requisito para o
casamento».
Em 2003, o mesmo pontífice insistiu: «A Igreja não rejeita a celebração do
casamento com aqueles que estão bem dispostos, ainda que imperfeitamente
preparados do ponto de vista sobrenatural, desde que tenham a intenção correta
de se casar de acordo com a realidade natural da conjugalidade».
Os pronunciamentos de Bento
XVI
Bento XVI, já antes de assumir a Sé Petrina,
interessou-se pelo tema da fé na celebração do casamento. Em 1998, como
prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, escrevia: «A questão de saber se
os cristãos não crentes podem realmente contrair um casamento sacramental, por
sua vez, exige estudos mais aprofundados. A fé pertence à essência do
sacramento; resta esclarecer a questão jurídica sobre qual evidência de “não fé”
tem como consequência que um sacramento não se realize».
Poucos meses após a sua eleição, Bento XVI confidenciou numa reunião com os sacerdotes
da diocese de Aosta: «Quando eu era Prefeito da Congregação para a Doutrina da
Fé, convidei várias Conferências Episcopais e especialistas para estudar este
problema: um sacramento celebrado sem fé. Se realmente se pode encontrar aqui
um motivo de invalidade, porque o sacramento carece de uma disposição
fundamental, não me atrevo a dizer. Eu pessoalmente pensei que sim, mas a partir
das discussões que tivemos percebi que o problema é muito difícil e ainda
precisa de ser aprofundado».
A sua reflexão parece chegar a uma conclusão
quando, a poucos dias da sua resignação, afirma diante dos juízes da Rota
Romana: «O pacto indissolúvel entre homem e mulher não exige, para a sua
sacramentalidade, a fé pessoal dos cônjuges; o que se exige, como intenção
mínima necessária, é a intenção de fazer o que a Igreja faz».
Ao retomar a questão da Comissão Teológica Internacional de 1977, o Pontífice responde
com a explicação de João Paulo II no discurso de 2003. Embora reconheça a
necessidade de uma reflexão mais aprofundada do problema no atual contexto
eclesial, isso não pode conduzir fora do caminho traçado e consolidado pelo magistério
na tradição eclesial. Considerações adicionais devem, portanto, ser orientadas numa
direção mais antropológica e existencial do que teológica-sacramental, para
tentar identificar a relação entre (ausência de) fé pessoal e uma mentalidade
mundana que afeta a realidade natural do casamento e, indiretamente, pode
comprometer vida conjugal que aspira ao bonum coniugum. Podemos dizer
que a inserção da falta de fé entre as circunstâncias que podem manifestar a
nulidade do casamento, como afirma o art. 14 §1 das Regras procedimentais do
MIDI constitui a resposta do Papa Francisco a este convite, dando mais um passo
no caminho traçado pelos seus predecessores.
III. O Papa Francisco e o art. 14 §1 das Regras
procedimentais do MIDI
Tomando partido de toda a reflexão anterior, ainda
antes da promulgação do MIDI, o Papa Francisco teve a oportunidade de refletir
sobre a relação entre fé e validade do pacto matrimonial. Na sua alocução à
Rota Romana de 2015, o Papa referiu-se, em especial, ao contexto existencial e
de valores em que amadurece a intenção dos noivos, suscetível de conduzir a um défice
na consciência (ou vontade) em relação ao próprio objeto do casamento. «De facto,
a falta de conhecimento dos conteúdos da fé pode levar àquilo que o Código chama
de erro que determina a vontade (cânone 1099). Essa eventualidade não se deve
mais ser considerar excecional, como no passado, dada a frequente prevalência
do pensamento mundano sobre o ensino da Igreja».
Esta reflexão encontrou a sua concretização no artigo
14 das Regras procedimentais, com a identificação, entre as circunstâncias que
abrem caminho ao processo mais breve, «daquela falta de fé que pode
gerar a simulação do consentimento ou o erro que determina a vontade». Evitando
as contradições ligadas à necessidade de uma (certa) fé pessoal como requisito
para a validade do casamento, o Papa não sugere uma nova causa de nulidade, nem
estabelece nenhuma «presunção de invalidez» dos casamentos celebrados por
pessoas batizadas que estão distantes da vida eclesial. De acordo com todo o
magistério anterior, o MIDI não afeta o objeto do pacto matrimonial, delimitado
pelas suas propriedades e elementos essenciais. No entanto, reconhece a
importância da fé para a formação da vontade matrimonial, de acordo com o plano
de Deus, pelo que «o juiz, ao ponderar a validade do consentimento expresso,
deve ter em conta o contexto de valores e de fé – ou a sua ausência – na qual a
intenção matrimonial foi amadurecida».
Após a promulgação e a entrada em vigor da reforma
do processo matrimonial, o Papa Francisco aproveitou o seu discurso à Rota de
2016 para insistir: «É bom reafirmar claramente que a qualidade da fé não é uma
condição essencial do consentimento matrimonial que, de acordo com a doutrina
de todos os tempos, pode ser prejudicada apenas ao nível natural. De facto, o habitus
fidei é infundido no momento do batismo e continua a ter uma influência
misteriosa na alma, mesmo quando a fé não foi desenvolvida e psicologicamente
parece estar ausente».
As regras do processo mais breve não prevêem, portanto, qualquer tipo de
nulidade “na hora” para os casamentos (irremediavelmente destruídos) daqueles
que foram batizados e escolheram casar na Igreja sem uma profunda consciência
do sacramento, possivelmente por razões sociais ou estéticas. A falta de fé não
é uma causa direta de nulidade (isso seria contrário à doutrina cristã do
sacramento), mas pode configurar o contexto em que uma discrepância na vontade
aparece claramente devido a erro ou exclusão em relação ao conteúdo natural do
contrato matrimonial. «De facto, o abandono de uma perspetiva de fé leva
inevitavelmente a um falso conhecimento da realidade do casamento, que não
permanece sem consequências no amadurecimento da vontade nupcial».
Portanto, não seria tanto a ausência de fé cristã
(e a consequente consciência do «grande mistério de Cristo e da Igreja») que
condicionaria a vontade – já que os não-cristãos são certamente capazes de
contrair matrimónio – mas sim, nas palavras do Papa Francisco, o espírito mundano
em que «a fé permanece desprovida do seu valor orientador e normativo, deixando
campo aberto a compromissos com o próprio egoísmo e com as pressões da
mentalidade atual».
Considerações finais
O contexto das últimas décadas, particularmente no
Ocidente, exerce uma forte pressão sobre a doutrina e a prática eclesial devido
à aparente contradição de tantos casamentos celebrados na igreja, por sujeitos
batizados com pouca ou nenhuma adesão pessoal a Cristo. A questão do «sacramento
celebrado sem fé» convida-nos a reler e recordar a tradição eclesial acerca da
realidade sacramental e do casamento em particular. Olhando atentamente,
encontramo-nos diante de uma consistência doutrinária do Magistério que
atravessa os séculos, resistindo à tentação de estabelecer um requisito (mínimo)
de fé para determinar a validade do sacramento. Com base nos fundamentos do
casamento canónico, podemos reconhecer a impossibilidade de levar a exigência
além dos elementos naturais do casamento. A intenção de fazer o que a Igreja
faz, de acordo com a fórmula tradicional, diz respeito à conjugalidade na sua
essencialidade antropológica, conforme estabelecido pelo próprio Criador na
aliança primordial de Adão: «o homem deixará pai e mãe e se unirá a sua esposa,
e os dois serão uma só carne» (Gn 2,24).
Enveredar pelo caminho de um requisito peculiar de
fé para a validade do matrimónio sacramental, além de se afastar da doutrina
constante e comum, levaria à abertura de um fosso entre o casamento cristão e o
casamento das outras pessoas, obscurecendo assim «o verdadeiro sentido do plano
divino, segundo o qual é precisamente a realidade criada que é um “grande
mistério” em referência a Cristo e à Igreja».
Mesmo entre os cristãos, o casamento correria o risco de se tornar num “ideal
para poucos” e não já “uma realidade que, na graça de Cristo, pode ser vivida
por todos os fiéis batizados”.
A previsão da falta de fé no artigo 14 das Regras procedimentais do MIDI, enquanto
circunstância que pode indicar a nulidade evidente do casamento, diz respeito,
portanto, não à fé em si, mas à medida em que ela (ou sua falta) determina a
vontade dos cônjuges, podendo configurar um erro ou uma exclusão que esvaziam o
consentimento expresso.
O MIDI, bem como a exortação
apostólica Amoris laetitia, não pretendem oferecer «vias de saída
fáceis» para resolver a situação de quem se encontra diante do fracasso do próprio
casamento – talvez reconhecendo que ele não tinha sido corretamente orientado –
mas representam, acima de tudo, um desafio à evangelização, chamada a tornar-se
o coração da pastoral da família e do casamento. Na sua ação pastoral, a Igreja
– pastores e fiéis – é convidada a oferecer verdadeiros caminhos de preparação,
remotos e próximos, para o casamento, assim como um acompanhamento afetivo e efetivo
de casais e famílias, de modo a intensificar a ação de Deus que, com sua graça,
chama os cônjuges e apoia sua vocação como sinal e instrumento do seu amor no
mundo.
Cf. M. Dubreuil,
«Des mariés pas très catholiques», Le Monde, 21.4.2019.
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Rui Oliveira*
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Introdução
O interesse por este tema surgiu pela leitura de
uma obra muito interessante de Amartya Sen, intitulada «Identidade e Violência», onde o autor faz uma
critica à nossa visão do mundo e à caracterização dos
«outros» (os Ocidentais sobre os Muçulmanos e os Muçulmanos face aos Ocidentais)
reduzida a apenas uma identidade, ou seja, caracterizam a sociedade e os seus
cidadãos numa base identitária unidimensional -
a religiosa – esquecendo outras identidades importantes como a
profissão, a familiar, a social, a moral, a política, entre outras. Em
particular, o autor estabelece uma crítica ao postulado por Samuel
Huntington na sua obra «Choque das Civilizações», nomeadamente que este reduz
o mundo a uma «federação de religiões», esquecendo que a sociedade é
caracterizada por mais do que as religiões e que é perigosa a catalogação do
Homem apenas nesta identidade. Neste plano, também são importantes as ideias de
Francis Fukuyama sobre o “fim da História”. A definição de «fim da História» de
Francis Fukuyama é proposta no seu artigo de 1989 (na revista «The National
Interest»). O autor diz que «o que podemos estar a testemunhar não é apenas o
fim da Guerra Fria, ou a passagem de um período particular da história do
pós-guerra, mas o fim da história como tal: isto é, o ponto final da evolução
ideológica da humanidade e a universalização da democracia liberal ocidental
como forma final do governo humano». Contudo, o autor alerta imediatamente que
continuarão a existir evoluções ideológicas pois as concepções de liberalismo
ainda estão incompletas, quer «no mundo real ou material.» Neste sentido, não
podemos considerar de forma literal a expressão «fim da história», mas sim
tentar enquadrá-la num plano de análise mais realista, ou seja, o que o autor
procurou explicar é que o fim da história deve ser entendido como o triunfo do
Liberalismo sobre as outras ideologias em competição, onde as outras ideologias
têm apenas capacidade de prevalecerem localmente, sem força para serem
universais tal como o Liberalismo. Posteriormente, o seu livro «O fim da
História e o Último Homem» aprofunda a ideia da
vitória e da influência do Liberalismo para o «fim da história», ao dizer que «não
é tanto a prática liberal, mas a ideia liberal, que surge triunfante [e isso]
significa que para uma muito alargada parte do mundo não existe agora uma outra
ideologia com pretensões à universalidade e em posição de contestar a
democracia liberal». Naturalmente, e aqui reside o ponto fulcral para o
presente ensaio, existem outras ideologias, «sistemáticas e coerentes», tal
como o islamismo, que conseguiram inclusivamente derrotar «a democracia liberal
em muitas partes do mundo islâmico.» Contudo, esta é uma ideologia cuja
capacidade de penetrar de forma alargada é pouco viável pois «esta religião não
exerce virtualmente nenhum fascínio fora das áreas de tradição cultural
islâmica».
Estas duas abordagens teóricas fizeram-nos pensar
numa discussão mais larga a propósito da relação entre identidade, religião e regimes
políticos. Mais concretamente, a compatibilidade entre Islão e Democracia.
Quando pensamos num tema com tal amplitude, que é
alvo de reflexão e discussão por uma larga comunidade de académicos e não só,
parece útil apropriarmo-nos de um diálogo de uma obra de um dos mais famosos
cientistas, Carl Sagan: «Indefinidamente, pensou
Ellie. Levantou a mão. O ano escolar começara havia pouco e ela ainda não
fizera nenhumas perguntas naquela aula. - Como pode alguém saber que os
decimais se prolongam indefinidamente? – Porque é assim – respondeu o
professor, com alguma rispidez.» A pequena Ellie perguntava acerca do número
Pi. Ficou curiosa como era possível afirmar-se que um número era infinito, como
era possível conhecer-se o início de um número, mas não o seu fim. É neste
contexto que vamos tentar responder à questão do trabalho, tendo por base a
seguinte estrutura: definição de alguns conceitos e ferramentas analíticas
importantes; a relevância do estudo das religiões e das democracias; e por fim,
a apresentação de um conjunto de argumentos na tentativa de responder à questão
que precede o nosso trabalho.
Democracia e Cultura Política.
Sendo o propósito do ensaio compreender a
compatibilidade entre Islão e Democracia, é necessário empreender um conjunto
de passos prévios. Um conceito que nos parece essencial conhecer primeiramente
é o de Cultura Política. Os estudos
de transição e consolidação democrática têm reconhecido que é importante observar
duas componentes analíticas. A primeira refere-se às
instituições e processos políticos – a necessidade de accountability dos líderes políticos perante os seus constituintes,
através de eleições livres, competitivas e regulares - e a segunda componente
assenta nas atitudes e valores dos cidadãos – a cultura política e a necessidade
de desenvolver «normas cívicas e de participação ao nível do cidadão
individual».
O conceito de cultura política determina que os «valores,
crenças e habilidades» da população têm um importante impacto nas instituições
democráticas,
existindo uma linha de pensamento – desde Almond e Verba até Putnam – que
defende esta relação entre cultura política e a estabilidade da Democracia e suas
instituições. Contudo, existem algumas críticas ao modelo de pensamento da
cultura política e às suas implicações para a Democracia, nomeadamente, os
fatores internacionais, o papel das elites, «elite bargaining» (onde se
enfatiza que a Democracia é determinada ao nível das elites, independentemente
das condições económicas ou culturais) e a relação entre o desenvolvimento
económico e a Democracia (desenvolvimento económico parece conduzir a níveis
mais elevados de democracia). Pese embora este conjunto variado de
interpretações e de abordagens analíticas, é nossa convicção, e
esperamos que mais à frente seja patente a sua utilidade, que a cultura política
é essencial na análise do papel do Islão e a sua compatibilidade com a
Democracia, pois, como refere Inglehart, «a
democracia não é alcançada simplesmente por meio de mudanças institucionais ou
de manobras ao nível das elites. A sua sobrevivência depende também dos valores
e crenças dos cidadãos comuns».
A Democracia não consiste num «conjunto único de
instituições. Existem muitos tipos de democracia, e as suas diversas práticas
produzem um conjunto de efeitos igualmente variados», e encontramos
um conjunto de conceitos que nos permitem distinguir entre subtipos de
democracia que «deveriam ser antes vistos como indicadores desse ou daquele
tipo de democracia, ou então como padrões úteis para avaliar o desempenho de
regimes específicos». As próprias definições de Democracia são muito
abrangentes e nesse sentido, é necessário estabelecer uma série de indicadores
que permitam compreender e operacionalizar melhor o conceito de Democracia e o
seu estudo.
A sistematização mais completa parece-nos ser a de
Larry Diamond e Leonardo Morlino: liberdades individuais; rule of law; a possibilidade de os
cidadãos participarem nos processos de decisão; a igualdade dos cidadãos
perante a lei; responsabilização horizontal e vertical dos governantes;
igualdade de oportunidades dos cidadãos; e a transparência da governação. A
escolha destes indicadores foi feita porque engloba questões de liberdades e garantias
que serão úteis para a análise do contexto dos países islâmicos.
Por fim, uma pequena incursão sobre o que
consideramos como Islamismo. Primeiro, existe uma dificuldade em utilizar uma
terminologia comummente aceite, o que implica que alguns estudiosos se dividam
entre os que usam a denominação Islamic
fundamentalism, Islamic revivalism, e Islamism. Naturalmente, com
acontecimentos como o 11 de Setembro, algumas definições tornaram-se demasiado
amplas, podendo ser aplicadas a vastos e distintos grupos. Contudo, existem
algumas apropriações conceptuais que podemos fazer. O termo Islão pode ser
utilizado para descrever «uma perspectiva política centralmente informada por
um conjunto de interpretações e compromissos religiosos». Alguns grupos islâmicos
têm um controlo sobre o discurso e são, hoje em dia, centrais para a política
dos países Árabes. A sua influência tem repercussões, por exemplo, na forma
como analisam os efeitos das eleições: existem alguns grupos que não aceitam os
resultados eleitorais pois entendem que a escolha de um governo retira a legitimidade
«of God´s sovereignty». Neste sentido, o Islão tem algumas consequências e
implicações fortes dentro dos sistemas políticos; o que é necessário, agora, é
compreender se existe ou não alguma relação entre o Islão e a Democracia.
Religião
e Democracia.
Outra viagem importante que é necessário fazer é a
ligação entre Religião e Democracia. Já verificámos que o debate sobre a religião
e política é muito intenso, ocupando alguns dos mais proeminentes cientistas sociais;
importa agora tentar especificar um pouco a relação entre os dois conceitos.
Alfred Stepan atenta que a questão «São todos, ou
apenas um, dos sistemas religiosos do mundo politicamente compatíveis com a
democracia? [é] uma das maiores, mais importantes e intensamente debatidas
questões do nosso tempo». Apesar de alguns
vaticínios sobre o declínio da importância da Religião para a sociedade, no
século XX verifica-se que a «religião está a ressurgir», e este «renascimento da
religião» é observado, virtualmente, em todos os continentes, civilizações e
países, e a descrição de George Weigel - «a des-secularização do mundo é um dos
factos sociais dominantes no final do século XX» - é referida por Samuel
Huntington como um exemplo paradigmático.
A religião é tida como forte causa da mobilização
política, é motivo de alguns dos mais importantes conflitos políticos actuais,
é vista como uma fonte de resistência ao Estado e é um aspecto da sociedade que
não tem apenas influência na actividade política interna dos países; pelo
contrário, a sua influência para a política internacional é imensa. Para o
campo da política comparada e sociologia, o estudo de algumas tradições
religiosas permite comparar diferentes realidades políticas devido a serem uma
fonte de identidade.
Tendo em conta esta realidade da sociedade e do
debate académico, em primeiro lugar o estudo da ligação entre Religião e
Democracia parece ser de uma actualidade indiscutível, e, em segundo, a religião
é um actor – um factor explicativo – da sociedade e por conseguinte dos
processos de democratização e mudança social.
Serão, Democracia e Islão, compatíveis?
Após uma pequena excursão sobre alguns elementos conceptuais
e ferramentas de análise, vamos, nas próximas linhas, procurar estudar até que
ponto podemos, ou não, conceber se existe compatibilidade entre o Islão e a
Democracia. Esta é uma questão que ocupa algum espaço no debate académico –
para além de todas as suas implicações no debate social e político, fora da
academia – e Frederic Pryor realça precisamente esse
aspecto: «Académicos e teóricos há muito discutem sobre a compatibilidade entre
Islão e Democracia». Este debate assenta numa discussão entre os que defendem a
compatibilidade entre ambos, inclusivamente a ideia de que não são só
compatíveis, como o próprio Islamismo promove a Democracia, e os que preconizam
a ideia de que ambos não são compatíveis. Nas próximas linhas vamos tentar
recuperar alguns dos elementos entre estes dois polos – e todo o debate dentro
deles - que compõem esta discussão.
A força da Religião no mundo muçulmano é
comummente aceite como preponderante, reflectindo o «carácter islâmico como
religião de leis relativas à organização da sociedade, bem como a moralidade
dos indivíduos»,
materializando-se na ideia de que a relação entre religião e política pode ser
mais dominante do que noutros contextos não-islâmicos. Podemos perceber também
que existem algumas características cruciais da democracia que não coexistem
nos países de tradição islâmica, tais como a falta de separação entre a Religião
e o Estado, a não existência de espaço
para a opinião pública democrática no processo de construção das leis e a falta
de «inclusive citizenship», tudo características que são emanadas do Corão e que portanto consubstanciam, de
forma clara, o comportamento dos cidadãos e, em particular, da elite, tendo em
conta as suas funções governativas e de liderança.
Alfred Stepan defende também que a questão do Islão
e Democracia envolve tantos pontos importantes que é um erro conceptual
concentrarmo-nos apenas no Islamismo como obstáculo à democratização, omitindo
outros elementos de análise tais como os contextos sociopolíticos, militares,
étnicos, económicos e internacionais. Defende ainda que a literatura comete um
erro ao assumir que os países de tradição islâmica são sinónimos de países
Árabes, pois, embora os processos de democratização enfrentem grandes desafios,
como é por exemplo o caso da Indonésia, encontramos uma percentagem superior a
metade da população de tradição islâmica que vive «em democracias,
quase-democracias, ou democracias intermitentes». Significa que, tal como
outros argumentos vistos atrás, por um lado, não se deve confundir um país de
tradição islâmica com um país árabe e, por outro, existem exemplos onde a
influência islâmica não é impeditiva do sucesso dos processos de
democratização.
O autor, em colaboração com Graeme Robertson, procura explicar que
existe, de facto, um défice democrático nos países árabes, que são
predominantemente de tradição islâmica. Contudo, aponta que é enganador alargar
este défice a outros países de tradição islâmica, principalmente se olharmos
para dados que compreendem «direitos eleitorais e políticos moderadamente altos».
Acrescentaríamos a esta tese um artigo de Larry Diamond onde este procura aprofundar
mais o argumento de Stepan e Robertson. Diamond conclui que, primeiro, existem
8 países não árabes que preenchem os requisitos mínimos da Freedom House de uma
democracia eleitoral, mas nenhum país árabe, e que os países árabes se
posicionam, em média, no valor 5.33 na escala de liberdade da Freedom House, com uma diferença de um
ponto face aos outros países de tradição islâmica. Perante o artigo de Stepan e
Robertson, surgiram algumas respostas, que referiam, entre outros, factores
externos – os interesses internacionais, nomeadamente americanos, o conflito
Israelo-Árabe, a falta de cooperação regional, a cessação do desenvolvimento
social e económico, e a feudalização do Estado e da Administração Pública – como
elementos explicativos que constituem obstáculos ao processo de democratização
nos países árabes, definindo, portanto, que não é apenas uma questão cultural
ou de simples incompatibilidade que explica a dificuldade de os países árabes
se direccionarem no sentido da Democracia. Outra critica que apontam à tese de
Stepan e Robertson, refere que a divisão entre os países de tradição islâmica
árabes e não árabes é questionável, e os próprios dados da Freedom House utilizados permitiriam que países árabes fossem
incluídos na lista de países com algumas liberdades políticas e eleitorais, se
algumas alterações fossem feitas.
Outro debate muito interessante que gostaríamos de
explorar é consequência dos trabalhos de John Esposito e colaboradores. Estes
estudos defendem a possibilidade de compatibilidade entre Islão e Democracia, tentando explicar que um
regime democrático em países de tradição islâmica é possível, mas não de acordo
com os preceitos ocidentais; ou seja, para os pensadores políticos muçulmanos
Democracia e Islão são compatíveis, mas o conceito de democracia deve ser
operacionalizado para garantir que as três máximas (Unity of God, Prophethood e Caliphate) sejam cumpridas. Paralelamente,
existe a ideia de que muitos muçulmanos estão cépticos quando à adopção de um
modelo ocidental que, segundo alguns pensadores, é assente numa lógica de
secularismo, de materialismo e com propósitos capitalistas, defendendo por isso
que se deve procurar construir uma noção de democracia islâmica. Contrário a este
argumento está David Bukay, ao assumir que o «mundo
islâmico não está pronto para absorver os valores básicos do modernismo e da
democracia», pois os líderes são autoritários e coercivos, e princípios básicos
como legitimidade, participação política, pluralismo e direitos e liberdades
individuais não existem num sistema «onde o Islão é a fonte última de lei».
Conclusão.
Jean Bethke Elshtain divide a literatura sobre
o Islão e a Democracia em quatro categorias: optimista, esperançosa, dúbia e desiludida.
Procurámos captar algumas destas características, verificando que existem os
que advogam que não é o Islão, e sim um «Arab democratic gap», o responsável
pelo insucesso da democratização nos países de tradição islâmica, os que
defendem factores externos ao islão, os que argumentam que existe uma
compatibilidade, mas não de acordo com os preceitos conceptuais ocidentais, e
por fim os que não acreditam na sua compatibilidade.
Não há uma resposta correcta ou definitiva. Apesar
desta afirmação bastante óbvia, nos argumentos apresentados não parece ser
encontrada uma distância intransponível entre Islão e Democracia, mas sim um
conjunto de factores específicos que limitam essa possibilidade. Assim, o que
mais se destaca é que, primeiro, não se deve afirmar que há incompatibilidade
entre o Islão e a Democracia. Simultaneamente, não se deve dizer que eles são
completamente compatíveis porque existem variáveis específicas
que os restringem. Em vez disso, as análises devem focar-se em factores
específicos, como a importância da etnia e da identidade (como apontam Amartya Sen
e outros) ou novas operacionalizações de democracia, a fim de continuar a
estudar esta exigente, mas crucial, questão.
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António Júlio Trigueiros, sj
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Editorial Agustina, um inédito Desde 1955 que a obra da escritora
Agustina Bessa-Luís, que nos deixou no passado dia 3 de junho, foi alvo da
atenção dos principais críticos literários da Brotéria: Manuel Antunes, João Mendes, João Maia, José Alves Pires,
Francisco Pires Lopes. O primeiro olhar sobre a obra de
Agustina data de fevereiro de 1955 e refere-se ao seu recém-publicado romance A Sibila, precisamente aquele que iria
consagrar o inicio da maturidade criativa da escritora. Na secção Vida literária, com o título Três romances campesinos publica-se uma
das primeiras recensões da pena do P. Manuel Antunes, na qual se analisam três
romances publicados em 1954: Olhos de
Água, de Alves Redol, O Trigo e o
Joio, de Fernando Namora e A Sibila,
de Agustina Bessa-Luís. É delicioso ler o que escreveu o ainda jovem Manuel
Antunes, na sua escrita límpida e profunda sobre o romance que consagrou
Agustina como romancista. O seu juízo é profético e acutilante: “é certo que A.
parece não curar muito da perfeição harmónica, à maneira dos gregos apolíneos.
Interessa-a antes de sondar a fundura dos rios que na natureza humana correm e
comunicar-nos essas sondagens. Mas também, não é menos certo que o ritmo – ao
retardador – da acção torna a leitura deste romance, por vezes, custosa.
Estamos, porém, em frente duma criação poderosa. Passam diante de nós, ao longo
das escassas trezentas páginas do volume, destinos humanos, vários destinos
humanos, que afluem e refluem, aparecem e desaparecem, como vagas de um mar
sempre igual e sempre diferente. Vários destinos humanos cujas águas a
escritora mexe e remexe até chegar aos limos, até esse ponto obscuro em que
brotam da terra, tumultuosas e misteriosas. Vários destinos humanos que evoluem
numa duração e espaço concretos – Entre Douro e Minho nas últimas décadas do
século passado e nas primeiras deste – mas cujas raízes se perdem no remoto dos
tempos e nas profundezas da natureza. Vários destinos que, no entanto, formam
com o ambiente um tecido cerrado e multicolor, de tons carregados. Depois, a
originalidade. A.B. Luís observou, observou muito e intuiu alguma coisa. Não é
fácil encontrar personagens seus que reproduzam alheias criações, não é fácil
encontrar processos que ela tenha seguido de perto. Originalidade absoluta? Não
dizemos tanto. Mas originalidade suficiente para se afirmar num país em que tanto
se copia o figurino alheio. Por tudo isto, se hoje existe em Portugal – o que é
difícil de averiguar – um romance, a um tempo autenticamente nosso e de
interesse universal, esse é, apesar das suas limitações, A Sibila de A. B. Luís. E, se não existe, ela é escritora para o
criar.” Manuel Antunes publicará ainda mais
duas recensões nos dois anos sucessivos relativas uma. em Agosto de 1956, ao
romance Os incuráveis, e a outra em
Outubro de 1957, ao romance A muralha. No seguinte ano de 1958 a atenção
sobre a obra de Agustina, cai sob o olhar do P. João Mendes. O professor de
literatura e de teatro, que marcou tantos estudantes jesuítas, dedica um texto
na Brotéria à peça O inseparável, de Agustina. Sublinha que
“a grande força de Bessa Luís, e o que aprofunda aquilo que toca, reside no seu
invulgar talento de análise, raro ou único entre nós.” Reconhece os limites da ‘arquitetura’
dos textos de Agustina nesta incursão pelo teatro: “os personagens falam, a
cada passo, através duma complicação psicológica que parece superior à sua
própria caracterização de fúteis. O que os poderia apresentar como porta-vozes
demasiadamente comandados pela Autora, que assim transparece, a observar, a
criticar e a analisar.” No entanto será o P. João Maia o
responsável pela autoria dos textos mais relevantes sobre Agustina. Dedica-lhe pelo menos uma dezena de textos e
em Novembro de 1980 publica na Brotéria
uma comunicação proferida em Braga intitulada Agustina Bessa –Luís - Um «caso» na literatura portuguesa. Aqui toma
um encontro casual com José Régio para explicar porque é que o grande poeta
considerava Bessa Luís um caso excepcional na literatura portuguesa: “A única vez que me aconteceu falar com o poeta
José Régio foi no Entroncamento, numa espaçada pausa de comboios durante a qual
vestidos de negro ambos comemos meio frango, no restaurante vazio, de moscas
estivais sensivelmente zumbidoras. Ainda hoje não sei como viemos à fala; mas o
certo é que fui eu quem, numa suspeita que seria ele, me levantei da minha
escureza numa vénia. ao grande escritor que, por sinal era pequeno de estatura,
concentrado no falar e amável no departir. A alturas tantas, depois de me pôr
reservas a um artigo que: eu tinha escrito sobre Mário Beirão, perguntou-me,
com olhos a luzir debaixo de negras sobrancelhas: — «Já leu os livros de Bessa
Luís? — Fique sabendo que é mais um «caso» na literatura portuguesa!» É sabido
que José Régio, no seu sistema crítico de ficção e mormente de poesia, ajuizava
pelo deflagrado da criação. Ser escritor original era fado, era algo de fatal a
que se não podia fugir e dificilmente se podia aumentar, melhorar, alçapremar.
Assim, para ele, António Nobre era um caso, Cesário Verde era um caso, Mário de
Sá-Carneiro era um caso, Camões, Antero, etc. E no fim da vida, as reservas que
fazia a Fernando Pessoa provinham talvez de que a cultura do Poeta da Ode
Marítima sombreava de certa maneira o fado da inspiração nativa; outros dirão
que a desintegração da personalidade manifestada nos heterónimos diluía aos
olhos de Régio o impacto que o génio poético deve vibrar no leitor. E disse-me
ainda o que lhe acontecera certo dia com um dos seus camaradas da Presença,
poeta de mérito a nosso ver, mas que não enquadrava nesta categoria de fado; de
«caso» que era, como digo, uma das categorias de Régio. Pois bem tendo-se
encontrado, numa rampa coimbrã, com esse camarada numa tarde em que ele
alardeava grandes coragens e decisões iconoclastas, perguntara-lhe: — «Quer
você que eu lhe diga uma verdade? — Olhe, você de poeta só tem uma coisa: a
vontade de o ser; e isso não chega!». Pois José Régio considerou desde a
primeira hora a escritora Bessa Luís «um caso», algo de genial, de irredutível
susceptível de trazer à literatura portuguesa algo de novo. Teria ele acertado?
Não há hoje ninguém que o não saiba.” José Alves Pires, professor
de Literatura em Braga, dedica-lhe dois textos em 1968 e em 1970 e, rendido ao
génio literário de Agustina, confessa: “Hoje a muito poucos restarão dúvidas já
sobre esta verdade: Agustina Bessa Luís detém, sem favor, a pena mais
privilegiada, o nome mais amplo, de direito, de toda a ficção portuguesa actual”. Entre 1982 e 2007, serão publicados
na Brotéria mais 17 notas críticas
aos romances de Agustina, particularmente da pena de Francisco Pires Lopes. Em 1990 quando se celebravam os 500
anos do nascimento de Santo Inácio, os jesuítas portugueses convidaram Agustina
Bessa-Luís para redigir um texto sobre a figura de Inácio de Loiola e
apresentá-lo no Congresso
histórico-cultural do Ano Inaciano que teve lugar em Lisboa na Sociedade de
Geografia em março de 1991 e dias mais tarde no Encontro Fé e Cultura, no auditório da Reitoria da Universidade de
Coimbra. Agustina documentou-se bem, viajou a Loiola para conhecer in loco a terra natal de Inácio, leu
biografias circunstanciadas e daqui resultou o ensaio que apresentou intitulado
Inácio de Loyola – a mística e o mistério.
Este texto no estilo literário muito característico de Agustina estava
destinado a ser publicado numas actas do congresso. Por condicionalismos vários
as actas nunca chegaram, porém, a ser dadas à estampa. O original
dactilografado e anotado pela sua autora conservou-se no arquivo dos jesuítas
portugueses. Para homenagear a grande escritora, a Brotéria publica neste número, na secção Artes e Letras esse texto inédito e quase esquecido da grande
Agustina.
Inácio de Loiola – A Mística e o Mistério
† Agustina Bessa-Luís
Não há obra grande sem inspiração. O que entendo por
inspiração é um reconhecimento perante a plenitude da lei que nos humaniza;
reconhecimento que filtra o nosso orgulho e que lhe dará o mérito da
eternidade.
Estas palavras podem aplicar-se à pessoa de Inácio de
Loyola, que foi, no início dos seus passos na terra, homem de muito orgulho e
encantamentos, como os que, se bem que parodiados pelo Quixote, eram a alma da
cavalaria.
Este pequeno ensaio refere-se apenas a um período da vida
de Santo Inácio que antecede a revelação da carreira espiritual em que se fez
famoso e extraordinário. É um período bastante agitado da sua juventude e, mais
ainda da sua alma conturbada e solitária. Os sofrimentos físicos resultantes da
ferida que sofreu em Pamplona, sendo a fortaleza assediada pelos franceses, não
se comparavam aos sofrimentos morais que vinham a multiplicar-se. As razões
eram muitas, se é que não houve uma mais cruel que nos é impossível destacar.
Mas antes de chegar a esse momento tocado das ambições da
glória castrense, é preciso situar aquele que se chamava ainda Iñigo, e não
Inácio de Loyola.
Quem visita Loyola na atualidade recebe ainda a impressão
do formidável espaço da montanha, sendo ainda o vale um reflexo do que foram um
dia os domínios dos senhores de Loyola. Pomares deleitosos deviam circundar a
casa-torre, de tipo rural, o que não foi deformado pelo plano da reconstituição
recente. O senhorio de Loyola deveu muito ao seu antepassado Don Beltrán Yáñez
de Loyola, filho de Juan Péres de Oñaz que, no ano de 1321, desbaratou, com seu
irmão Gil de Oñaz, 70.000 navarros e franceses somente com um exército de 800
homens. Eram sete irmãos, os de Oñaz. Afonso XI, o Justiceiro, atribuiu, pelo
menos, aos dois que mais se distinguiram, o título de Cavaleiros da Milícia de la Banda. As regras dos Cavaleiros de la
Banda eram de muito interessantes praxes que confinavam com as regras da
Cavalaria. Todos os que pertenciam à dita Banda deviam falar pouco e com
verdade; deviam suportar a dor sem queixume e calar as proezas cometidas;
deviam, quando andassem a pé, caminhar devagar e falar em voz moderada ou
baixa. Se encontrassem no caminho uma senhora que fosse de valimento, teriam de
se apear e acompanhá-la. Não podiam beber em vaso de barro nem água em cântaro,
e teriam de persignar-se com a mão e não com o copo, o que era tido por
grosseiro gesto da matulagem ou soldadesca. Mais ainda: nenhum cavaleiro da
Banda estaria na corte sem servir alguma dama, a quem fizesse mesura com o
joelho em terra. Isto é importante para o teor deste discurso.
Em 1337, D. Beltrán, senhor de Loyola, recebeu de D. Juan
I de Castela a renda anual de 2.000 maravedis, proveniente das ferrarias de
Berrenola e Aranaz, a título vitalício e transmissível aos herdeiros. Estavam
fundados os alicerces da pecúnia e força social da Casa de Loyola. Em 1394 é
ainda a Coroa de Castela quem confere o direito de Patronato sobre a igreja
paroquial de Azpeitia; e depois Henrique III confirma os dízimos, rendas e
direitos do mosteiro de San Sebastian à já poderosa casa de Loyola e Oñaz. Em
1551, o jesuíta Pedro de Tablares acentua que, por efeito do patronato
auferido, o senhor de Loyola é como um bispo na sua igreja, tendo muito mando,
tanto no temporal como no espiritual. Este senhor de Loyola é Beltrán de Oñaz,
sobrinho de Santo Inácio. Nesta data abandona Inácio o governo da Companhia, já
desamparado da saúde mas não da consolação da morte, que era tanta que em
lágrimas se debulhava pela alegria de a ver perto.
Em Junho de 1521, Inácio terá instalado na casa de Loyola
que deixara há quinze anos para servir junto do senhor de Arévalo e Olmedo,
ministro das finanças dos reis católicos, Juan Velásquez. A sogra desse grande
de Castela, dona Maria de Guevara, tinha parentesco com a mãe de Inácio ou
Iñigo, pelo que o favor prestado em tê-lo no solar de Arévalo e na corte fica
explicado. Este tipo de adopção era frequente, sendo que as famílias nobres e
numerosas ansiavam por esse género de protecção que facilitava a carreira dos
jovens prometedores. Os próprios filhos do ministro Velásquez serviram a rainha
Isabel como pajens.
Juan Velásquez era, pois, um familiar da coroa e soube
aproveitar as condições que os Reis Católicos lhe impuseram com rendas
quantiosas. A sua fortuna parecia não ter fim, e quando D. Joana, chamada a
Louca, e seu marido chegam a Espanha como futuros reis, mantém as boas graças
quanto a Juan Velásquez, concedendo-lhe o governo da fortaleza de Arévalo, com
um soldo elevado. As mercês e as honras chovem sobre o ministro. Ao casar D.
Fernando, o Católico, em segundas núpcias com Germaine de Foix, esta, com apenas
18 anos, afeiçoou-se excessivamente a D. Maria de Velasco, a mulher de Juan
Velasquez. As festas e os banquetes, de que Germaine era muito praticante, o
que a fez obesa e algo beberrona, não deixaram de comprometer a fortuna dos
Velasquez, por muito que a convidavam. Iñigo de Loyola assistia a todo o
esbanjamento e luxo, porque tanto o velho rei como a esposa iam a Arévalo e
hospedavam-se no palácio Velásquez. Recebia, como outros mancebos da comitiva
do ministro, uma educação cortesã; e é possível que andasse por outras cidades
de Castela, como Madrid, Valladollid, onde o senhor de Arévalo tinha casa com
pedra de armas. Tudo era abundante, propício e prometedor dum futuro brilhante.
Era tanta a grandeza de Juan Velasquez, que habitava em geral o palácio real de
Juan II, mobilado e decorado com o esplendor que a morte de Isabel permitiria
exceder mais. Quando morreu a piedosa soberana, foram postas em almoeda as suas
riquezas, e Juan Velásquez arrematou grande parte delas. Juan Velásquez, como
testamenteiro da rainha, teve ao dispor essa fortuna imensa, com o encargo de a
classificar e escolher para que a almoeda se realizasse. O grupo Velasquez não
fica isento de suspeita, e a aquisição de enormes bens, disputados por
banqueiros italianos e pela rainha Germaine, deixa no ar uma sombra agoirenta.
O ministro, de rico que era, faz-se nababo. Iñigo de Loyola vive entre
tapeçarias e ouro puro. Os candelabros da capela são de azeviche; o hostiário é
de prata cinzelada; o Missal tinha incrustadas 300 pérolas, com ricas
iluminuras. Foi comprado por 130.000
maravedis, o que era uma fortuna, supondo-se que eram maravedis de oiro.
Juan Velásquez, ou porque amasse as letras ou porque elas
lhe adornavam a glória, deu em munir-se de bons livros entre elevados, devotos e
moralizantes. Iñigo teve ao alcance da mão a biblioteca de Isabel a Católica
que, se não o entusiasmou tanto como as obras de cavalaria lidas na mansão de
Arévalo, o instruiu no latim, que não era o seu forte nem o seu maior cuidado,
de resto.
Juan Velásquez não se mostra muito interessado na pintura
flamenga, mas sim nas pérolas, nos rubis, nos diamantes. Tudo em grande
profusão, incluindo-se as sedas, os veludos, os panos de Florença, os lençóis
de Túnis e de Holanda. Iñigo acostumou-se àquele viver que tinha mais de árabe
do que de cristão. Era um jovem de pequena estatura e de belos cabelos loiros.
Quando via passar o senhor de Arévalo, com o seu fradesco roupão de veludo
vermelho forrado de seda negra, orgulhava-se de servir gente tão soberba e abençoada
pela fortuna. Não se alvoroçava, porque era de ânimo secreto e ponderado. Mas o
coração pedia-lhe um destino alto e excelente. Lia o Amadís de Gaula, e a
imaginação urdia proezas e o corpo pedia-lhe travessuras. “Travessuras de
mancebo” é o que Inácio de Loyola diz que praticou, quando dita as suas
memórias ao Padre Luís Gonçalves da Câmara. Algumas bem ofuscantes para um
espírito de tão imensa raridade.
Mas vai suceder um caso, simples como a morte, que tudo
há-de transtornar. Fernando o Católico lança o último suspiro, tendo ao lado
Juan de Velasquez, e deixa no seu testamento uma clausula que irá arruinar o
seu ministro. Ao legar a Germaine de Foix uma renda anual que seria retirada do
reino de Nápoles, não podia prever que Carlos V, o novo soberano, tivesse algo
a dizer; ele decide substituir essas rendas pelo senhorio de Arévalo, Olmedo e
Madrigal. Justamente os domínios de Juan Velasquez. Abre-se um litigio entre os
fortes poderes de Carlos, as exigências de Germaine e as negativas do senhor de
Arévalo, que sai vencido, cansado e, sobretudo, desonrado. Morre ou mata-se,
que foi demasiado súbito o seu desenlace. A casa está arruinada, Maria de
Velasquez tem um gesto generoso com Inácio antes de tomar o caminho de Portugal
como camareira junto de D. João III: ela dá dinheiro do seu bolso a Inácio,
dois cavalos e recomendações para que o duque de Najera o colocasse. A vida
cortesã tinha acabado, começava uma incerta suserania ao vice-rei de Navarra, o
que era pior do que um desastre, era uma desilusão.
Contamos este episódio trágico para sublinhar a
disposição de Inácio de Loyola depois de onze anos no padroado do grande Juan
Velásquez. Não se emenda a alma como uma perna quebrada; e a alma de Inácio
estava quebrada. O duque de Najera, em Pamplona, ia render homenagem ao
soberano Carlos V, e decerto Inácio teve de o acompanhar. Era o mesmo rei,
verdugo do seu patrono tão amado; e o duque de Najera era o seu novo amo. As
contradições são o que nos obriga a resistir à morte, porque para resolvê-las
vivemos. Foi na sua servidão de Navarra que Inácio de Loyola se encontrou a
defender a fortaleza de Pamplona; onde foi gravemente ferido.
Agora propomos aqui o principal enigma da juventude
inaciana. Contou ele ao seu memorialista P. Luís Gonçalves da Câmara o
seguinte: estando prostrado no leito, sofrendo dores e humilhações de ver a
vida mal parada, acontecia-lhe ficar desvanecido em pensamentos deslumbrados
por uma dama. Sonhava ir aonde ela estava e imaginava os versos que lhe havia
de dizer; sem pensar que tudo era loucura, “porque a senhora não era de vulgar
nobreza; não era condessa, nem duquesa, mas era o seu estado mais alto do que
qualquer destes”. Correu muita tinta, fizeram-se variadas conjecturas para se
descobrir o nome desta dama. Uma vez que Inácio não mentia, a dona existira,
tinha uma alta linhagem e distinguia-se na sua época entre as poucas que a
podiam igualar. Seria uma princesa e, uma vez afastada Germaine de Foix, gorda
e meio coxa, com mais apetite do que graças, restava Catarina, a irmã mais nova
de Carlos V e que foi rainha de Portugal. Mas Catarina, quase sequestrada pela
mãe, Joana a Louca, tinha doze anos e vivia andrajosa no castelo de
Tordesilhas. Se Inácio a viu, o que não é de estranhar porque Maria de Velasco
tinha entrada no castelo, insinuante como era junto de quaisquer poderes, os
presentes e os futuros, Catarina não correspondia a uma estrela da cavalaria.
Seria ignorante, como o eram as senhoras da cristandade; as próprias irmãs de
Inácio não sabiam ler, pois as virtudes femininas eram doutra ordem.
Mas Inácio de Loyola, fino entendedor de romances de
cavalaria, não ia servir alguém que não o merecesse no sentido da cultura e da
grandeza de espírito. Quem era, pois, a senhora dos seus solitários
pensamentos? Na verdade, só havia nessa época uma mulher capaz de corresponder
aos sinais dados por Inácio. Era ela Margarida de Angoulême, a irmã de
Francisco I.
Margarida das Margaridas, o que quer dizer “pérola das pérolas”,
como lhe chamou o irmão, não usava o título de princesa para não ter que
acrescentar Angoulême, Alençon e Navarre. Mais tarde foi, pelo segundo casamento,
rainha de Navarra. Era duma cultura admirável, duma sensibilidade elevada, duma
beleza angélica, duma curiosidade quase funesta; além de que nascera dotada de
inclinação mística. Quando o marido, Charles d’Alençon, morre, não na batalha
de Pavia, como se diz, mas de uma prosaica pneumonia, Margarida usa o luto
branco das princesas de sangue. É uma mulher erudita que beneficiou da educação
ministrada ao irmão e que se lançou abertamente num compromisso espiritual que
a leva quase à heresia. A época fervilhava dum humanismo filológico, há um
interesse novo pela kabala, pelo hebreu; o vulgar parece uma deficiência do
gosto, a Grécia antiga toma ascendente, a Europa está cheia de génios
voluntariosos ameaçados pela fogueira. Erasmo sabe da existência de Margarida e
tenta dialogar com ela por duas vezes. Mas o sentido político da princesa
esquiva-se. Erasmo era o conselheiro de Carlos V e inimigo de Francisco I.
Entre os dois Césares, Margarida escolhe uma prudência, de resto bem rodeada
por uma corte de sábios cristãos. Destaca-se Jacques Lefevre d’Étaples, cuja
obra escrita lhe vale alguns dissabores. Mas Margarida protege-o, e ele é
colocado como perceptor dos infantes. Porquê esta preferência por Étaples?
Porque ele era o guia espiritual de Briçonnet, entretanto nomeado bispo de
Meaux. Entre 1521 e 1524, Guillaume de Briçonnet vai ser o mestre, o doutor, o
seu acompanhante durante a crise que se abriu na vida da princesa. É uma
depressão moral cujas sequelas Margarida levará consigo durante a vida inteira
e que os historiadores não conseguem explicar. Na mesma data, no seu leito de
dor em Loyola, Inácio sofre uma crise semelhante. É coincidência ou partilha
dum caso que podia bem ser familiar a ambos?
Em Junho de 1521 Margarida lança um apelo desesperado.
Fala dos seus temores e da sua solidão. É uma época difícil, as fronteiras do
reino estão ameaçadas, o marido está a defender a região de Champagne, ela
sente-se desprotegida e inquieta. Mas há decerto para isso uma razão mais
profunda. Dirige-se a Briçonnet, porque ele é a figura mais eminente da igreja
de França e acaba de reunir à volta dele as forças vivas do pensamento cristão:
Lefevre d’Etaples, Gerard Russel, François Vatable, Michel d’Arende, Marcel Mazurier
que, este, conhece em Paris Inácio de Loyola e pratica os exercícios
espirituais. Em 1521 o cenáculo de Meaux está constituído. Miguel de Aranda é o
agente de ligação entre Margarida e Briçonnet. Natural de Tournai, na Flandres,
maître Michel d’Aranda não negaria os
seus ancestrais castelhanos. E pode ser ele o fio condutor que parte da corte
de Margarida e de sua mãe Luísa de Saboia. O cenáculo de Meaux, com o seu
evangelismo, o seu reformismo, as suas reticências piedosas, em 1525 está
submetido e conforma-se às leis ortodoxas. A correspondência de Margarida com
Briçonnet, que se estende de Junho de 1521 até 18 de Novembro de 1524,
compreende 59 cartas da princesa e 64 do bispo de Meaux. “Senhora, a causa do
socorro por vós requerido é, como me escreveis, que vós vos preocupais de
muitas coisas que vos causam temor. Que a fé, esperança e amor são a única
coisa necessária e que fora disso não há necessidade de ajuda nem socorro.” São
palavras justas e formosas. Mas bastarão a um espírito tão perturbado como o de
Margarida? Na primeira carta ela refere-se a “maistre Michel”, o portador.
Trata-se de Michel de Aranda, familiar da rainha mãe e da irmã do rei,
Margarida. Ele lia em segredo a um grupo de mulheres as Escrituras, e o bispo
de Troyes tinha-o por pouco ortodoxo.
Nessa altura Margarida considera-se “mais do que doente”.
Briçonnet responde: “Doença longa causa languidez; terra destituída de chuva
nocturna languesce e torna-se estéril (...) amor lento é doença da alma...”.
Briçonnet conhecia as causas do mal de que Margarida sofria? Conhecia-as talvez
por confidências que não eram de molde a serem postas por escrito. Sendo Aranda
tão íntimo das princesas, não chegaria ao profundo ermo em que se debatiam as
causas? “Amor lento é doença da alma...” O bispo de Meaux merecia a confiança
que depositavam nele os discípulos e, em particular, Margarida, já prestes a
tornar-se poeta e mulher de letras. Em 1524 ela escreve o Diálogo em forma de visão nocturna e implora de Deus o único amor,
“o único necessário” que Briçonnet lhe ensinara a desejar e a esperar. A
convalescença começa, Margarida liberta-se, o mundo sensível já não a magoará
mais.
É esta mulher extraordinária que está no pensamento de
Inácio quando parece abatido por um mal desconhecido no seu quarto da
casa-torre de Loyola? É esta mulher, e nenhuma outra?
“Morte é cura dos doentes: muitos a desejam visceralmente
sem a poder abraçar.” A carta de 20 de outubro de 1522, de Briçonnet a
Margarida, descreve, sem que o cuide, o estado de Inácio. Ele sente-se chegado
ao porto da morte, que é libertação dos cavaleiros. “Muitas vezes a doença
custa a velha pele que a morte renova.” Aqui percebemos o que sempre pressenti:
que a dor é mais auxiliar da vida do que o prazer. Inácio tem uma perna
disforme, os ossos soldaram durante a viagem que fez em andas, aos ombros dos
seus criados, e apresentam-se salientes e de aspecto repugnante. Ele acede a
ser outra vez sujeito à terrível prova de lhe quebrarem a perna para remediar o
defeito. O próprio irmão estremece perante a ideia de tal suplício. Mas Inácio
está pronto a sofrê-lo. Por vaidade? Para retomar a presença galante? Tem já
trinta anos, não é mais um mancebo que se preste às ilusões da corte. Inácio
quer sofrer; conta com o sofrimento para recuperar-se do seu lânguido estado. E
sujeita-se à terrível prova para, sem lançar um gemido, digno cavaleiro da
Banda que ele continua a ser. Pensa na sua dama durante horas seguidas, mas é
já um pensamento feito de consolação; sabe que a não pode alcançar e, como a
própria rainha de Navarra evoca um dos seus mais belos contos, ele pode dizer:
“Le temps m’a fait voir l’amour veritable, / Que j’ai connu en ce lieu
solitaire [...] Je ne puis mieux dire adieu à tous maux, / à tous malheurs et
douloureux travaux, / Sans nul espoir, òu que sois ou soyez, / Que je vous
voie, ou que plus me voyez”.
Se houve algum dia trato entre dois seres excelentes,
podia ser o encontro de Inácio de Loyola e Margarida de Angoulême. Em tudo
foram perfeitos e de nascimento privilegiado para o amor ardente, que não
frutifica na terra mas em lugar mais alto e incorruptível.
“Amor lento é doença da alma”, diz o bispo de Meaux, às
vezes levado por uma retórica surpreendente e um barroquismo de linguagem que
amortalha os pensamentos porventura tristes e oprimidos. “Madame, várias
espécies de pessoas estão demasiado no próprio corpo”. Inácio não é dessas
pessoas. É um místico, e um místico é um ser misterioso. A raiz da palavra, em
grego, é a mesma. O mistério de Inácio cinge-se a um pudor dos sentimentos
profundos, pudor de ter Deus como amor que a todos os outros relega. Não é
culpa amar tanto, quando são pobres de amor as criaturas mortais? Uma agitação
estranha consome-o. Quando o irmão volta de guerrear os franceses (volta
vencido da pequena campanha de Guipuscoa) encontra Inácio mudado. É um estado
de distração, não ainda a indiferença activa que o distanciará das coisas,
segunda maneira da humildade e que há-de assinalar nos Exercícios. Todos advertem essa mudança, e talvez lhe doa ser
motivo de atenção porque Iñigo decide deixar a casa de Loyola. Dirige-se a
Navarrete, onde está o duque de Najera. O cardeal de Tortosa, Regente do reino,
fora eleito Papa, e um vento de entusiasmo varre a província inteira. O duque
de Nájera apressa-se a ir a Vitória beijar os pés do Sumo Pontífice, Adriano.
No meio deste feliz tumulto, Inácio esgueira-se (escabulha-se do irmão, é a
palavra usada na Biografia) e desaparece. Começa a vida de peregrino, mas o seu
espírito está ainda alterado.
Manresa, que foi a pátria do novo Inácio, conheceu
decerto os passos mais dolorosos do Santo. Manresa serviu de testemunho para a
sua canonização e prestou-lhe a honra da memória minuciosa. Sobretudo as
mulheres, souberam adivinhar na melancolia de Inácio, nos seus actos às vezes
estranhos, sinais dum sofrimento interior. Se o homem é o mistério, as mulheres
compreendem no mistério, antes de tudo, a dor humana.
Foi uma época de revolta, de meditação alucinada, de
tentação que se abeirou do suicídio. Ele debate-se com a fortaleza inexpugnável
do mistério. O mistério está nele, cerca-o por todos os lados e é, no entanto,
incompreensível. Vivia de esmola, não comia carne nem bebia vinho. E como
tivera orgulho no belo cabelo loiro e na delicadeza das mãos, deixou de
pentear-se e de cortar as unhas. Estas maneiras estranhas atraíam murmurações,
e as suas sete horas de oração debilitaram-no; quando julgava pode descansar à
noite, o pensamento adornava-se de alegrias ofuscantes, como notícias divinas.
A sua natureza que era robusta, enfraqueceu. As desolações, os escrúpulos, os
terrores aumentaram com o quebrar das forças. Mas Inácio sabia que o seu estado
só podia ser vencido por outro estado que se lhe opusesse: o do abandono da
resistência que era obra do mal.
O sofrimento é grande doutorado. Indo um dia caminhando
junto a um rio, sentou-se, o rosto voltado para a água, e o entendimento
chegou, vindo de Deus. Não foi sabedoria, foi mudança de corpo e alma. E tanta
que a carreira carismática ali ficou traçada. O coração de Inácio abriu-se para
a gratidão e compreendeu que a dor fora um dom e não um castigo. Que o amor não
tem senhoria e que o homem tem de perseguir uma vida banal e cansada, coroa
duma vida gloriosa que o mundo nunca lhe dará, ainda que a prometa.
Em 1529, sete anos passados depois da sua enfermidade em
Loyola, Inácio está em Paris, no Colégio de Santa Bárbara cujo director era, ao
tempo, Diogo de Gouveia, que tinha obtido do rei D. João III a doação de trinta
bolsas de estudo para jovens portugueses. Frequentam o Colégio de Santa Bárbara
e os Gouveia, Pedro Fabro, Francisco Xavier, António Pinheiro. Sete anos tinham
passado, como na novela da rainha de Navarra; Loyola entra no campo agitado das
grandes empresas espirituais e pode dizer como o eremita Elisor: “Le temps m’a
fait, par sa force et puissance, avoir d’amour parfaite connaissance.”
“Je désire mourir en votre bande” – escrevia Margarida de
Angoulême ao bispo Briçonnet. Iñigo, que se muda em Inácio em homenagem a
Inácio de Antioquia, vive e morre na banda dos cavaleiros e, como Inácio de
Antioquia, diz aos seus fieis: “Sede um cântico”. Iñigo coloca-se sob a
bandeira de Inácio porque o bispo de Antioquia se empenhou na unidade da Igreja
e perseverou contra a sedução das falsas doutrinas. Foi o apóstolo da unidade,
o místico da imitação de Cristo. A tradução latina das cartas de Inácio de
Antioquia deveu-se a Lefevre d’Étaples, em 1498; portanto, Loyola teria acesso
a esses textos, em todos os sentidos. O espírito dos Exercícios contém o espirito das cartas, que é um espírito
glorioso, mas que se limita, para não se perder no seu próprio orgulho. A força
viril está explícita no pensamento que Loyola teria sentido como o seu
pensamento: “Seguramente, eu desejo sofrer, mas não sei se sou digno disso”.
Inácio de Loyola foi digno. Tesouros de sofrimentos foram-lhe dispensados, como
a Orestes; e ele renasceu para a humildade como se nascesse para a maior das
glórias.
“Faltam-nos muitas coisas para que Deus nos falte.” - diz
o mestre de Antioquia. É uma oração e é um cântico. É a palavra do
bem-aventurado em harmonia com o Espírito. Em paz.
Porto, 29 do 12 -1990
AGUSTINA BESSA-LUÍS. |
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