MAIO/JUNHO 2017 - “Estado, Igreja e Fátima" |
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Jaime Nogueira Pinto |
Estado, Igreja e FátimaO anticatolicismo português,
manifestando-se geralmente como anticlericalismo e anticurialismo, tem raízes
profundas. Nos Estados católicos do sul da Europa – Nápoles, França, Espanha,
Portugal –, remonta à segunda metade do século XVIII e ao absolutismo
iluminista dos ministros Tanucci, Choiseul, Aranda e Pombal. É com eles que
começa a primeira ofensiva moderna anti-religiosa – a guerra contra a Companhia
de Jesus, vista como uma milícia supranacional ao serviço do Papa de Roma. A
política anti-jesuítica e regalista de Pombal é imitada por França, por Espanha
e pelo reino de Nápoles e as pressões conjuntas dos governos de Lisboa, Paris,
Madrid e Nápoles levam o papa Clemente XIV a suprimir a Companhia pela Bula Dominus ac Redemptor, de 21 de Julho de
1773. Os processos de supressão foram
acompanhados por grandes violências, com padres mortos, presos e deportados.
Catarina II da Rússia e Frederico II da Prússia, uma cristã ortodoxa e um
céptico luterano, acolheram-nos então nos seus domínios, onde existiam
populações católicas.[1] A longa guerra contra a Igreja Este anticlericalismo do século XVIII,
resultante de uma aliança entre as elites laicas, racionalistas, absolutistas e
regalistas, vai transformar-se depois da experiência de perseguição e martírio na
Revolução Francesa e da forte reacção católica na Restauração. Em França, paralelamente a contra-revolucionários
como Joseph de Maistre, o visconde de Bonald ou até o abbé Barruel, que apelavam
a uma catolicidade mais constantiniana e política, o renascimento católico e
cristão é indissociável de Chateaubriand e do seu Génie du Christianisme, começado no exílio de Londres em 1799 e
terminado em Paris, em 1802. Chateaubriand, que em Essai sur les Révolutions se mostrara imbuído do cepticismo
racionalista do tempo, fazia ali um mea
culpa e repensava a fé dos pais. Fora a notícia da morte da mãe, que tinha
passado pelos cárceres da revolução e testemunhado a execução de vários
familiares, incluindo a de um filho, que determinara a mudança: Quando depois da triste notícia da morte de Madame Chateaubriand,
me decidi subitamente a mudar de vida, o título Génio do Cristianismo, que encontrei de repente, inspirou-me; pus
mãos à obra e trabalhei com o ardor de um filho que constrói um mausoléu para a
mãe.[2] A partir de meados do século XIX e
das revoltas da Primavera das Nações, em 1848, depois das políticas de
convergência da Santa Aliança que encorajaram a união do Trono e do Altar, a
luta entre o Estado e a Igreja vai reacender-se. As revoltas, que tinham
conduzido à chamada República Romana de 1849 e se prolongariam nos tempos da
unificação italiana de 1861, abriram as portas à Questão Romana. Também ajudaram
ao novo ciclo os acontecimentos da Comuna de Paris e o nascimento da Terceira
República Francesa, laica e anticlerical. Os assassinatos do arcebispo de Paris
e de outros sacerdotes inauguraram a prática de fuzilar padres e bispos como
sinal e bandeira de revolução. Portugal não fugia à regra. O liberalismo
monárquico português tivera, desde Joaquim António de Aguiar, uma marca anti-
congregacionista, que apelava ao “revigoramento de uma frente liberal ampla,
programaticamente baseada na defesa das leis secularizadoras de Pombal e do
Liberalismo”.[3]
Sempre ao sabor das influências europeias, os liberais portugueses acompanhavam
a escalada dos movimentos secularistas no combate, já não apenas aos odiados jesuítas,
mas a toda a Igreja. A Igreja mostrava-se atenta à
nascente Questão Social. Em polémica com os excessos do liberalismo capitalista
e do socialismo marxista, o papa Leão XIII proclamava, na Rerum Novarum, uma terceira via entre a realidade do capitalismo da
primeira revolução industrial e as visões utópicas de Marx de emancipação do Proletariado
e de plena Justiça Social (que teriam como inevitável primeira etapa uma luta de
morte entre classes). Em França, o movimento anticlerical
continuaria ao longo do último quartel do século XIX, sobretudo a partir de
1880. O ataque à Igreja baseava-se no princípio da “incompatibilidade” de
lealdades e obediências: ou se era bom cidadão ou se era bom cristão. Tinha
sido essa a justificação de Luís XIV para a revogação do Édito de Nantes – “Un
seul troupeau sous un seul berger”. Justificação a que agora Léon Gambetta
acrescentava: “Le cléricalisme, voilá l’ennemi”. Jules Ferry, o racionalista republicano
e colonial, proclamava a Lei do Ensino Superior, que legitimava a expulsão dos
jesuítas e de outras congregações, lei que só mais tarde viria a ser aplicada.
Mas o virulento anticlericalismo francês – indissociável do espírito galicano e
jansenista da pátria de Voltaire – não depunha as armas. E não era exclusivo da
ideologia progressista nem de determinada classe, acompanhando as variações político-sociais.
René Rémond analisou o fenómeno, traçando o comportamento de nobres, burgueses
e populares em relação ao cristianismo: A burguesia, religiosa perante uma aristocracia libertina,
tornou-se céptica quando a nobreza redescobriu a devoção. Os operários,
agarrados às suas tradições religiosas enquanto a burguesia esteve impregnada
de voltaireanismo, desligaram-se da prática religiosa e tornaram-se
anticlericais, quando a burguesia reencontrou o caminho da Igreja.[4] Nesses finais do século XIX, o
anticlericalismo nos países católicos fundamentava-se na ameaça – ao Estado, à
nação, à liberdade e à própria razão – que a Igreja de Roma representava, com
os seus ritos, o seu universalismo, o seu transnacionalismo. O anticlericalismo
francês, influente em Itália, Espanha e Portugal, trazia a marca dos filósofos
racionalistas e materialistas. Na volta de 1900, os ataques à Igreja Católica
em França entravam numa escalada também ditada pela influência da
Franco-Maçonaria nas cúpulas e quadros dos partidos da Terceira República. Essa influência ia traduzir-se na
famosa Lei Combes de 1905. As duas Franças do Caso Dreyfus batiam-se agora à
volta de questões como o sistema educativo e o Registo Civil. Émile Combes, em
1901, acabara com 2500 escolas religiosas e em 1904 proibira o ensino pelas
congregações. Estas leis laicizantes que visavam combater
e destruir a influência cultural e social da Igreja Católica, deviam muito às
Lojas Maçónicas a que pertenciam Gambetta e Combes, bem como a maioria dos
membros do governo Rouvier que, em 1905, votava a legislação que pretendia acabar
com o protagonismo social da Igreja. Paralela a esta acção
político-institucional, e mais eficaz nos espíritos do século, seria a
influência de pensadores como Nietzsche, com o seu aforismo no Alegre Saber “Deus está morto”. Para Nietzsche
“a fé no deus cristão perdera a plausibilidade”. A desconstrução crítica e
irónica da dogmática cristã de Flaubert, no seu póstumo e inacabado romance Bouvard et Pécuchet, seria também
determinante. Da “letargia” à resistência Por volta de 1870, meio século depois
da Revolução Liberal, dois dos maiores e mais interessantes pensadores e
escritores portugueses do tempo, Oliveira Martins e Ramalho Ortigão, não
deixavam também de registar uma visão muito negativa da religiosidade nacional.
Escrevia Oliveira Martins: A religião, entre nós, é uma conveniência social para os
políticos; uma superstição elegante para as mulheres, um velho hábito banal
para o povo, para o maior número. Um sentimento consciente, imperativo,
fecundo, isso é que ela já não é para ninguém (…) Oficialmente, nas
estatísticas, há 4 milhões de cristãos em Portugal. Realmente, nos corações, há
4 milhões de indiferentes.[5] E corroborava Ramalho Ortigão: Nunca se foi menos religioso, no sentido dogmático desta
palavra, do que hoje em dia. A descrença austera e consciente, nuns
irreflectida e palavrosa e insolente noutros, invadiu por infiltração todas as
camadas sociais, a ponto de ser provável que numa igreja, como na Semana Santa,
inteiramente cheia de fiéis
sinceramente devotos, se não encontre
um só crente perfeitamente convicto.
Para a multidão, o dogma, ou é uma coisa indiferente, ou uma coisa desconhecida
ou uma coisa refutada.[6] O Partido Republicano Português, cujo
chefe e doutrinador principal, Afonso Costa, se distinguia pelo encarniçamento anticatólico,
queria imitar nas razões e nos modos os seus correligionários de Paris. As perseguições
anticatólicas dos jacobinos portugueses são bem conhecidas.[7] Sob uma retórica
humanitária e progressista, o PRP de Afonso Costa praticava uma política
sectária contra inimigos políticos – os monárquicos e os católicos – mas também
contra os movimentos sindicais nascentes e os partidos republicanos moderados –
Unionistas e Evolucionistas. E até contra figuras da República, como o presidente
Manuel de Arriaga. Arriaga procurou a reconciliação nacional, chegando a apoiar,
em Fevereiro de 1915, uma solução presidencial autoritária, a chamada “ditadura
Pimenta de Castro”, que terminaria com uma sangrenta revolução dos Democráticos.
Os Democráticos, por razões
ideológicas, forçaram a intervenção militar na guerra europeia, intervenção
muito impopular entre a generalidade da população e nas próprias Forças Armadas,
que desejavam apenas intervir na África portuguesa. Em relação à Igreja, a situação do regime
era de hostilidade e confrontação. Como sublinha Rui Ramos, a partir da
República e das leis da Separação: O Estado deixava de reconhecer a religião católica como
religião oficial do país. Mas, ao mesmo tempo, deixava de reconhecer a
existência em Portugal de uma igreja católica com a sua hierarquia submetida a
Roma. Assim, a lei tratava o catolicismo como se este não passasse do culto
doméstico de alguns cidadãos a quem o Estado dava licença para realizarem
cerimónias em edifícios – as igrejas – que a lei ordenava que ficassem a
pertencer ao próprio Estado.[8] A Igreja e os católicos procuraram
então organizar-se para resistir, revivendo devoções – como o Terço do Rosário
a Nossa Senhora –, através de publicações como o Jornal Novidades e de associações como o Centro Académico da Democracia
Cristã (CADC). Tinham percebido que era nos tempos de perseguição que se
revelavam os melhores. É neste contexto que acontecem as aparições de Fátima. La Salette e Lourdes A 19 de Setembro de 1846, em La
Salette-Fallavaux, uma povoação de 734 habitantes perdida nos Alpes, dois pastores,
Mélanie Mathieu, de 14 anos, e Maximin Giraud, de 11, viam, ao guardar as vacas
no alto da montanha, “uma senhora bastante alta, vestida de branco, com uma
cruz ao peito…” A Senhora, ao vê-los com medo, tranquilizara-os e, elevando-se,
deixara-lhes uma mensagem: o Seu Filho sofria por causa da impiedade dos
habitantes da região – o abandono da vida religiosa e da oração, as injúrias,
as blasfémias. Más colheitas e a peste da batata seriam alguns dos muitos castigos
que adviriam caso não mudassem de vida. A aparição geraria polémica mas acabaria
por ser reconhecida pelas autoridades eclesiásticas e pelo bispo de Grenoble. Mas a mais célebre aparição do século
XIX aconteceria em Lourdes, em 1858, a uma rapariga de 14 anos, Bernadette
Soubirous. Na companhia da irmã Maria, de 11 anos, e de uma amiga, Jeanne,
Bernadette veria “uma luz doce”, donde emergia uma criança. Quando Maria contara à mãe, as duas
irmãs tinham sido repreendidas e, perante a insistência de Bernadette,
fisicamente castigadas. Mas as crianças continuaram a teimar e a fama começou a
espalhar-se pelo lugar. Eram cada vez mais os que se juntavam para acompanhar
Bernadette à gruta de Massabielle, mas só a pequena via a Virgem Maria. Chegaram
então a fama, as notícias, as histórias. O comissário de Polícia, Dominique
Jacomet, interrogou Bernadette, ameaçou-a, insultou-a. Mas nos dias seguintes o
número de crentes e curiosos aumentou, as autoridades interessaram-se, os médicos
vieram para dar pareceres. No Verão acorreram bispos e católicos
importantes, como Louis Veuillot, o director do jornal L’Univers, um jornal católico tradicional, que protestava contra a
interdição oficial de acesso à gruta. O próprio Napoleão III intervinha a
pedido da mulher, a imperatriz Eugénia, que atribuía a Lourdes a cura da filha. Depois de quatro anos de inquérito e
deliberação, as aparições de Lourdes eram reconhecidas pela hierarquia
católica. Assegurava o bispo de Tarbes, monsenhor Bertrand-Sévère Laurence: A Imaculada Maria, Mãe de Deus, apareceu realmente a
Bernadette Soubirous, a 11 de Fevereiro de 1858 e nos dias seguintes, num total
de dezoito vezes, na Gruta de Massabielle, perto da cidade de Lourdes; esta
aparição reveste-se de todas as características de verdade e os fiéis têm razão
em considerá-la fidedigna. Submetemos humildemente a nossa avaliação ao juízo
do Soberano Pontífice, que detém o governo da Igreja universal.
Fátima, 1917 No ano de 1917, no Portugal
republicano, multiplicavam-se as provocações e as violências contra a Igreja e
contra os católicos. Os assaltos a igrejas para roubar, profanar e incendiar
repetiam-se. A indiferença ou até a cumplicidade das autoridades democráticas em
relação a estes atentados levavam os bispos a ordenar a retirada dos objectos
de culto de maior valor. Também nesse ano de 1917, com a guerra, se reacendiam
as tensões entre o Estado e a Igreja a propósito da assistência religiosa aos
soldados em campanha. A reacção dos católicos ao clima de
perseguição, que só abrandara com o governo de Pimenta de Castro, tivera altos
e baixos. Agora, para que se mobilizassem na defesa da fé, lançava-se nos meios
católicos a campanha do Rosário, rezado diariamente, de preferência em família:
“A Igreja católica em Portugal está atravessando uma crise terrível. Não há
memória de outra assim. É tão decisiva que ou resiste ou morre de vez”,
escrevia-se em editorial no jornal católico A Ordem, em Março de 1916. Mas a perseguição estimulava a
resistência à “crise terrível”, uma crise que já se fazia sentir em finais do
século XIX, quando Oliveira Martins e Ramalho Ortigão descreviam os quatro
milhões de católicos portugueses como quatro milhões de indiferentes ou até de
descrentes, contaminando o povo com a descrença das elites. Foi no contexto de uma igreja
perseguida num país de culto mariano e de piedade popular que se deram as
aparições de Fátima. No início, as reacções à “história” dos três pastorinhos
não foram muito diferentes: a imprensa jacobina e maçonizante ridicularizava as
aparições como uma montagem grosseira do clero católico para reacender a fé nas
almas incultas e aumentar a sua influência nos “espíritos fracos”; e a imprensa
católica e conservadora remetia-se prudentemente ao silêncio ou tratava o tema
com cautela ou até com algum cepticismo, reflectindo a atitude da hierarquia da
Igreja. Só depois da terceira aparição surgiram
as primeiras notícias na imprensa católica local. A história culminaria no dia
13 de Outubro, cinco meses depois de três crianças, numa tarde quente de
Primavera, terem pela primeira vez visto e conversado com a Virgem Maria ao
pastorearem o rebanho de família na Cova da Iria; e de, depois de interrogadas
e ameaçadas com o tribunal, a tortura, a morte e o Inferno, terem insistido na
veracidade da aparição e da mensagem que a própria Mãe de Deus lhes transmitia. Avelino
de Almeida, repórter de O Século, um
livre-pensador e anticlerical que o tempo tinha tornado mais moderado, estava
em Fátima nesse 13 de Outubro para
“relatar os factos” com que eventualmente se viesse a deparar. Termina assim a
sua reportagem: Resta que os competentes digam de sua justiça sobre o macabro bailado do sol que hoje, em Fátima, fez explodir hossanas dos peitos dos fiéis e deixou naturalmente impressionados, ao que me asseguram sujeitos fidedignos, os livres-pensadores e outras pessoas sem preocupações de natureza religiosa que acorreram à já celebrada charneca.[9] No dia
seguinte, o vespertino Portugal,
órgão do Partido Democrático, saía em primeira página com um comentário jocoso
ao “bailado do sol”, conforme narrado por “um redactor que um jornal da manhã
expressamente destacou para a charneca de Fátima, local escolhido pela Virgem
Maria para se revelar a três pequenos labrostes a quem, há meses, pontualmente
no dia 13, se digna dar rendez-vous”:
O que nos surpreende não é que uma
multidão densa e rumorosa acorra ao local da maravilha para participar das
revelações celestes, tão habituados estamos já às manifestações de crendice
indígena, o que, na verdade, nos faz pasmar é que o sol, astro respeitável e
com os seus créditos firmados, tome também parte na função e se ponha a bailar
como um folião […] Pois vêm agora três pequeninos lapuzes e dão com a verdade
científica em pantanas, fazendo, pelas influências de que dispõem na corte do
céu, bailar o sol sobre o lugar eleito de Fátima.[10]
Mas a “crendice indígena” não chegava
para justificar o indesmentível bailado do sol; e ainda que a “folia” do astro-rei
pudesse ser dissecada cientificamente, nada explicava o facto de “três
pequeninos lapuzes” a terem previsto para aquele dia e para aquela hora. A Igreja e o Estado Novo: entente cordiale O novo regime, no seu período de
Ditadura Comissarial, a Ditadura Nacional, mantinha elementos importantes
ligados à Maçonaria, sobretudo entre os militares; no entanto, a 26 de Junho de
1927, o bispo de Leiria presidia, pela primeira vez, a uma cerimónia oficial na
Cova da Iria. Depois de, por Carta Pastoral, monsenhor Correia da Silva, bispo
de Leiria, ter reconhecido como “dignas de crédito” as “visões das crianças” e
oficializado o culto a Nossa Senhora de Fátima, organizou-se para 13 de Maio de
1931 uma peregrinação nacional com a consagração de Portugal ao Coração
Imaculado de Maria. Ao episcopado português juntaram-se então mais de 200 mil
peregrinos – ou aos milhares de peregrinos juntava-se agora o episcopado
português. No ano seguinte, o presidente Óscar Carmona e o presidente do
Conselho, José Vicente de Freitas, iam a Fátima para o 13 de Maio. Nesse mesmo ano,
Salazar, dirigente católico e homem forte das Finanças, era nomeado Presidente
do Conselho. Apesar de o despertar dos católicos portugueses
estar muito ligado à experiência de perseguição durante a Primeira República e
à devoção mariana em Fátima, o Estado Novo começou por regular as relações com
a Igreja Católica através da Concordata. Salazar, que não se identificava com
uma política clerical, começava por fazer um grande elogio ao laicismo
anglo-saxónico, com uma Igreja livre num Estado livre. Podia vir da área
política católica e podia a nação ser católica ou cristã mas o Estado devia ser
religiosamente neutro, longe do jacobinismo do laicismo francês e português mas
longe também de ser um Estado confessional. De qualquer forma, com o Estado Novo,
a Igreja passava a ter, não só a liberdade de culto que perdera na República, mas
um papel importante na formação da consciência portuguesa e na evangelização
das terras de Além-Mar. E era natural que assim fosse,
olhando a tradição das relações Estado-Igreja em Portugal desde a implantação
do regime liberal em 1834 e durante a República. O entendimento e a colaboração entre
o Estado Novo, como regime político, e a Igreja Católica, como instituição
religiosa, com raízes histórico-ideológicas no país, era ainda reforçado pelo
quadro europeu e mundial dos anos trinta: por um lado, havia o comunismo
soviético, claramente anticristão nos seus pressupostos filosóficos e prática
política, com as perseguições à Igreja Ortodoxa e a todas as confissões
religiosas desde a Revolução de Outubro; por outro, regimes como o
nacional-socialismo apresentavam uma concepção do homem e do mundo de tipo
racista com aspectos etnocêntricos e paganizantes. Embora não combatessem
abertamente o Cristianismo, estes regimes acabavam por apresentar-se como
doutrinas alheias ou mesmo hostis ao pensamento e aos valores cristãos. Numa
Europa dividida entre radicalismos internacionalistas e nacionalistas, era, pois,
natural que a Igreja e os papas se sentissem particularmente gratos a regimes
que aderiam aos princípios da catolicidade romana e da doutrina social da
Igreja, O fenómeno de Fátima, com as suas
características de religiosidade popular e peregrina, com o apelo universal aos
valores de um cristianismo renovado e militante, trazia para o Estado Novo uma
indirecta mobilização, sobretudo nas novas gerações, de militância activista
conservadora fora da disciplina de organizações de feição miliciana e
paramilitar, como a Legião Portuguesa ou até a Mocidade. Por isso o entendimento
perdurou por três décadas até aos meados dos anos sessenta e ao aparecimento
dos chamados “católicos progressistas”. Para além da trivialidade
propagandística dos “Três Efes” – Fado, Fátima e Futebol – avançados pela
oposição como sustentáculos “ideológicos” e “ópio do povo” do regime
salazarista (Salazar não era particularmente devoto de nenhum deles), a verdade
é que a Igreja e o Estado, para o melhor e para o pior, viveram na Segunda
República num ambiente de entendimento e convívio, compreensível dada a prevalência
dos inimigos comuns. O que não quer dizer que a Igreja e o
Estado Novo se sobrepusessem ou atropelassem. Salazar tinha horror às amálgamas
e às confusões de interesses ou territórios; era suficientemente católico para
restituir à Igreja as missões e privilégios que lhe competiam, na Metrópole e
no Império, mas era demasiadamente nacionalista e sensível à razão de Estado
para se deixar arrastar para formas de clericalismo ou clerocracia disfarçadas.
Foi mais depressa a massa da hierarquia, dos sacerdotes e dos leigos militantes,
que encarnou esse espírito. E a atribuição de uma simbologia política a Fátima,
às aparições, às peregrinações, ou algum do seu aproveitamento político, partiu
mais da acção de católicos salazaristas ou conservadores do que de uma
manipulação propagandística do Estado. Os fenómenos comuns de reinvenção da História e do papel das pessoas e movimentos na História a partir do presente podem distorcer, e têm distorcido, entre nós, estas realidades, magnificando por conveniência ideológica pequenos episódios e comportamentos minoritários que sublinham as diferenças e dissensões. É o caso do papel dos católicos progressistas na oposição ao Regime e de episódios anedóticos à volta da vinda de Paulo VI a Fátima sem passar por Lisboa. A visita deu-se num momento em que Roma se afastava da tradição da Europa evangelizadora (também pelo Império) e em que Salazar, ainda que sujeito à autoridade do Papa, se sentia mais o zelador dos interesses da Nação do que o católico ou o governante católico. De qualquer forma, foi em Fátima, a Fátima que, segundo o cardeal Cerejeira se impusera à Igreja (e também a Salazar, ao regime e ao país), que o Papa e o Presidente do Conselho então se encontraram. [1]
Ao contrário, o “muito cristão e esclarecido” imperador da Áustria, José II,
encarniçou-se contra as ordens contemplativas, como as Carmelitas, em todos os
recantos do Império, argumentando que “as Ordens que não serviam o próximo não
podiam servir a Deus” e que “a Monarquia era demasiadamente pobre e atrasada
para se poder dar ao luxo de sustentar preguiçosos…” [2] Chateaubriand, Mémoires d’Outre-Tombe, Tome I, Texte de l’édition originale
(1849), Le Livre de Poche, Paris, 1973, pp 460-461. [3]
Fernando Catroga, “O laicismo e a questão religiosa em Portugal (1865-1911)” in
Análise Social, vol. XXIV, (100), 1988, p. 212 [4] René Rémond, L’anticlericalisme en France de 1815 à nos jours, A. Fayard, Paris 1976 [5]
J.P. Oliveira Martins “Liberdade de Culto”, in J.P. Oliveira Martins, Páginas Desconhecidas, Seara Nova,
Lisboa, 1948, pp 23-24 [6]
Ramalho Ortigão, As Farpas Completas: o
país e a sociedade portuguesa, 3º Volume, Círculo dos Leitores, Lisboa,
2007, p.781. [7]
Cfr. Jaime Nogueira Pinto, Nobre Povo –
Os Anos da República, Esfera dos Livros, Lisboa, 2010, pp. 103-132. [8]
Rui Ramos, “A Segunda Fundação (1890-1926)”, in História de Portugal (Organização
de José Mattoso, Vol. VI, Círculo dos Leitores, Lisboa, pp 407-408 [9] Avelino
de Almeida citado por Costa Brochado, Fátima
à Luz da História, pp. 361-362. [10]
Citado por Costa Brochado, Fátima à Luz
da História, pp 265-266. Cf. Jaime Nogueira Ponto Nobre Povo, pp. 255-258 |